terça-feira, 27 de dezembro de 2011

E, e, e - de Robin L. Silverman

No canto de minha escrivaninha há um bilhete, amarelando lentamente e enrugado
pelo tempo.
É um cartão mandado por minha mãe, contendo apenas quatro frases, mas com
impacto suficiente para mudar minha vida para sempre.
Nele, ela elogia, sem restrições, minhas habilidades como escritora. Cada frase está
cheia de amor, oferecendo exemplos específicos do que minha atividade significou para ela
e meu pai.
A palavra "porém" nunca aparece no cartão. Entretanto, a palavra "e" está lá quase
meia dúzia de vezes.
Sempre que o leio - o que acontece quase todos os dias lembro-me de perguntar a
mim mesma se estou fazendo a mesma coisa por minhas filhas. Perguntei-me quantas
vezes eu disse "mas" a elas e a mim mesma, afastando-nos da felicidade.
Odeio dizer que foi com mais freqüência do que eu gostaria de admitir.
Ainda que nossa filha mais velha normalmente só tirasse dez em seu boletim, nunca
houve um semestre em que pelo menos um dos professores não sugerisse que ela falava
demais em sala de aula. Eu sempre me esquecia de perguntar-lhes se ela estava
melhorando quanto ao controle de seu comportamento, se seus comentários contribuíam
para a discussão em andamento ou encorajavam um aluno mais calado a falar. Em vez
disso, eu ia para casa e a cumprimentava:
"Parabéns! Seu pai e eu estamos muito orgulhosos de suas realizações, mas será
que você poderia tentar baixar o tom em sala de aula?"
O mesmo era verdade para nossa filha mais nova. Como sua irmã, ela era uma
criança adorável, inteligente, articulada e amigável. Ela também trata o chão de seu quarto
e do banheiro como um armário, o que me levou a dizer, em mais de uma ocasião: "Sim,
este projeto é ótimo, mas arrume o seu quarto!"
Percebi que outros pais fazem a mesma coisa: "Toda a nossa família estava junta no
Natal, mas Kyle escapuliu cedo para brincar com seu novo jogo de computador", "O time de
hóquei ganhou, mas Mike deveria ter feito aquele último gol", "Amy é a Rainha da
Primavera, mas agora quer duzentos dólares para comprar um vestido e sapatos novos".
Mas, mas, mas.
Ao contrário, aprendi com minha mãe que, se você quer realmente que o amor flua
para seus filhos, comece a pensar "e, e, e...".
Por exemplo: "Toda a nossa família estava junta no jantar de Natal, e Kyle conseguiu
ficar craque em seu novo jogo de computador antes que a noite tivesse terminado", "O time
de hóquei ganhou e Mike fez o melhor que pôde durante todo o jogo", "Amy é a Rainha da
Primavera e ela vai estar linda!".
A verdade é que "mas" não nos faz sentir bem e "e" faz. E quando falamos de nossos
filhos, sentir-se bem é o que temos que fazer. Quando se sentem bem a respeito de si
mesmos e do que estão fazendo, fazem ainda mais, aumentando sua autoconfiança, seus
critérios e as conexões harmoniosas com os outros. Quando tudo o que dizem, pensam ou
fazem é qualificado ou desprezado de alguma maneira, sua felicidade azeda e sua raiva
aumenta.
Isso não quer dizer que as crianças não precisam ou não irão corresponder às
expectativas de seus pais. Precisam e vão, independente dessas expectativas serem boas
ou ruins. Quando essas expectativas são consistentemente inteligentes e positivas e então
são ensinadas, modeladas e expressas, coisas inacreditáveis acontecem:
"Vejo que você cometeu um erro. E sei que você é inteligente o bastante para
descobrir o que fez errado e tomar uma decisão melhor da próxima vez." Ou: "Você está há
horas trabalhando nesse projeto. Adoraria que o explicasse para mim." Ou: "Nós
trabalhamos duro para ganhar dinheiro e sei que você pode nos ajudar a descobrir um jeito
de pagar pelo que você quer."
Não basta dizer que amamos nossos filhos. Em uma época em que a frustração
cresceu aterradoramente, não podemos mais nos dar ao luxo de limitar a expressão do
amor.
Se quisermos diminuir o som da violência em nossa sociedade, te
remos que aumentar o volume da atenção, do elogio, da orientação e da participação
no que é correto para nossos filhos.
"Chega de mas!" é o toque de chamada para a felicidade. Também é um desafio, a
oportunidade fresca diante de nós, todos os dias, de concentrarmos nossa atenção no que é
bom e promissor a respeito de nossos filhos e de acreditarmos de todo o coração que eles,
eventualmente, serão capazes de ver o mesmo em nós e nas pessoas com quem, no final,
irão viver, trabalhar e servir.
E, se algum dia eu me esquecer, tenho o bilhete de minha mãe para lembrar-me.

"50 Histórias Para Aquecer o Coração"

domingo, 25 de dezembro de 2011

O grande dom da minha mãe - de Marie Ragghiandi


“O otimismo é uma disposição alegre que permite que um bule de chá assobie apesar de estar com água quente até o nariz.” (Anônimo)

Eu tinha dez anos de idade quando minha mãe teve paralisia, causada por um tumor
na espinha dorsal. Antes disso ela havia sido uma mulher vibrante e vigorosa, de tal
maneira ativa que a maioria das pessoas achava impressionante.
Mesmo quando era pequena, eu ficava admirada com suas realizações e por sua
beleza. Porém, quando tinha trinta e um anos, sua vida mudou. Assim como a minha.
Do dia para a noite, parecia, ela passou a ficar deitada de costas em uma cama de
hospital. Um tumor benigno a havia incapacitado, mas eu era jovem demais para
compreender a ironia da palavra "benigno", pois ela nunca mais seria a mesma.
Ainda tenho imagens vívidas dela antes da paralisia. Ela sempre foi gregária e
recebia muitas visitas. Com freqüência passava horas preparando canapés e enchendo a
casa de flores,
que colhia frescas no jardim cultivado ao lado da casa. Selecionava as músicas
populares da época e rearrumava a mobília a fim de abrir espaço para que os amigos
pudessem se entregar à dança. Na realidade, era minha mãe quem mais gostava de dançar.
Hipnotizada, eu a observava se vestir para as festividades noturnas. Mesmo hoje em
dia ainda me lembro de nosso vestido favorito, com sua saia preta e corpete de renda azulmarinho,
o contraste perfeito para seu cabelo louro. Fiquei tão emocionada quanto ela no
dia em que trouxe para casa sapatos de salto alto de renda preta e, naquela noite, minha
mãe certamente era a mulher mais bonita do mundo.
Eu acreditava que ela podia fazer qualquer coisa, fosse jogar tênis (ganhara
campeonatos na universidade), costurar (fazia todas as nossas roupas), tirar fotografias
(ganhou um concurso nacional), escrever (era colunista de um jornal) ou cozinhar
(especialmente pratos espanhóis para meu pai).
Agora, apesar de não poder fazer nenhuma dessas coisas, ela encarava sua doença
com o mesmo entusiasmo que tinha em relação a tudo o mais.
Palavras como "deficiente" e "fisioterapia" tornaram-se parte de um estranho mundo
novo no qual entramos juntas, e as bolas de borracha para crianças que ela se esforçava
para apertar adquiriram um simbolismo que jamais haviam possuído.
Gradualmente, passei a ajudar nos cuidados com a mãe que sempre cuidara de mim.
Aprendi a cuidar do meu próprio cabelo - e do dela. Eventualmente, tornou-se rotina levá-la
na
cadeira de rodas até a cozinha, onde ela me ensinava a arte de descascar cenouras e
batatas e como esfregar alho e sal e pedaços de manteiga em uma boa carne assada.
Quando, pela primeira vez, ouvi falarem em uma bengala, opus-me:
- Não quero que a minha linda mãe use uma bengala. Mas a única coisa que ela
disse foi:
- Não é melhor você me ver andando com uma bengala do que não me ver andando
de maneira alguma?
Cada conquista era um marco para nós duas: a máquina de escrever elétrica, o carro
com câmbio e freio automáticos, sua volta à universidade, onde se diplomou em Educação
Especial.
Ela aprendeu tudo o que podia sobre as pessoas com deficiências e acabou fundando
um grupo ativista de apoio chamado Os Incapacitados. Certo dia, sem ter falado muito de
antemão, ela me levou e a meus irmãos a uma reunião dos Incapacitados. Eu nunca vira
tantas pessoas com tantas deficiências. Voltei para casa, silenciosamente introspectiva,
pensando em como nós realmente tínhamos sorte. Ela nos levou muitas vezes depois disso
e, eventualmente, a visão de um homem ou uma mulher sem pernas ou braços não nos
chocava mais. Minha mãe também nos apresentou a vítimas de paralisia cerebral,
enfatizando que a maioria era tão inteligente quanto nós, talvez mais. E nos ensinou a nos

comunicarmos com os retardados mentais, mostrando como eles eram freqüentemente
mais afetuosos, comparados às pessoas normais. Durante tudo isso, meu pai continuou a
amá-la e apoiá-la.
Quando eu estava com onze anos, minha mãe me contou que ela e papai iriam ter
um bebê. Muito depois, eu soube que seus médicos tinham insistido para que ela fizesse um
aborto (terapêutico) - uma opção à qual ela resistiu veementemente.
Logo, éramos mães juntas, já que virei mãe adotiva de minha irmã, Mary Therese.
Em pouquíssimo tempo aprendi a trocar fraldas, banhá-la e alimentá-la. Ainda que
mamãe tenha mantido a disciplina maternal, para mim foi um passo gigantesco além da
brincadeira com bonecas.
Um momento se destaca mesmo hoje em dia: o dia em que Mary Therese, na época
com dois anos, caiu e esfolou o joelho, abriu-se em prantos e passou correndo pelos braços
estendidos de minha mãe para os meus. Tarde demais, eu vislumbrei a faísca de dor no
rosto de mamãe, mas tudo o que ela disse foi:
- É natural que ela corra para você, pois você toma conta dela tão bem...
Como minha mãe aceitava sua condição com tanto otimismo, raramente me senti
triste ou ressentida. Mas nunca irei esquecer o dia em que minha complacência foi
destruída.
Muito tempo depois da imagem de minha mãe em salto agulha ter se dissipado da
minha consciência, houve uma festa em nossa casa. A essa altura eu era adolescente, e vi
minha sorridente mãe sentada na lateral, olhando seus amigos dançarem, e fui atingida
pela cruel ironia de suas limitações físicas. Subitamente, fui transportada de volta à época
de minha primeira infância e a visão de minha mãe dançando radiante estava novamente
diante de mim.
Imaginei se mamãe se lembraria também. Espontaneamente, andei em sua direção
e então vi que, apesar de estar sorrindo, seus olhos estavam marejados de lágrimas.
Corri para fora do aposento e para o meu quarto, enterrei meu rosto no travesseiro e
chorei copiosamente - todas as lágrimas que ela jamais chorara. Pela primeira vez, eu me
enraiveci contra Deus e contra a vida e suas injustiças para com a minha mãe.
A lembrança do sorriso brilhante de minha mãe permaneceu comigo. Daquele
momento em diante, enxerguei sua habilidade de superar a perda de tantas batalhas
anteriores e seu ímpeto em olhar para a frente - coisas que eu tomava por certas - como
um grande mistério e uma poderosa inspiração.
Quando eu estava crescida e comecei a trabalhar com o sistema penal, mamãe se
interessou em trabalhar com os prisioneiros. Ela telefonou para a penitenciária e pediu para
dar aulas de Redação Criativa para os detentos. Lembro-me de como eles se amontoavam
em volta dela sempre que ela chegava e pareciam se agarrar a cada palavra sua, como eu
fizera na infância.
Mesmo quando não podia mais se deslocar até a prisão, ela freqüentemente se
correspondia com vários detentos.
Um dia pediu-me para enviar uma carta para um prisioneiro, ''Waymon”. Perguntei
se poderia lê-la antes e ela concordou, sem perceber, eu acho, o quanto aquilo seria
revelador para mim.
Dizia:
"Querido Waymon,
Quero que saiba que tenho pensado em você com freqüência desde que recebi sua
carta. Você mencionou como é difícil estar preso atrás das grades e meu coração se une ao
seu. Mas quando você disse que eu não imagino o que é estar na prisão, senti-me
compelida a dizer-lhe que está errado.
Existem diferentes tipos de liberdade, Waymon, diferentes tipos de prisões. Às
vezes, nossas prisões são auto-impostas.
Quando, com a idade de trinta e um anos, levantei-me um dia para descobrir que
estava completamente paralisada, senti-me em uma armadilha - dominada pela sensação de estar presa dentro de um corpo que não mais me permitiria correr através de uma
campina, dançar ou carregar minha filha nos braços.
Fiquei deitada ali durante muito tempo, lutando para chegar a um acordo com minha
enfermidade, tentando não sucumbir em autopiedade. Perguntei-me se, na verdade, valeria
a pena viver nessas condições, se não seria melhor morrer.
Pensei a respeito desse conceito de prisão, pois me parecia que havia perdido tudo o
que importava na vida. Eu estava próxima do desespero.
Mas, então, um dia me ocorreu que, na realidade ainda havia opções abertas para
mim e que eu tinha a liberdade de escolher entre elas. Será que eu iria sorrir quando visse
meus filhos de novo, ou iria chorar? Iria zangar-me em Deus, ou iria pedir que Ele
fortalecesse minha fé?
Em outras palavras, o que eu iria fazer com o livre-arbítrio que Ele havia me dado e
que ainda era meu?
Tomei a decisão de lutar, enquanto estivesse viva, para viver o mais plenamente
possível, para procurar tornar minhas experiências aparentemente negativas em
experiências positivas, procurar formas de transcender minhas limitações físicas expandindo
minhas fronteiras mentais e espirituais.
Eu podia escolher entre ser um exemplo positivo para meus filhos ou podia murchar
e morrer emocional assim como fisicamente.
Existem muitos tipos de liberdade, Waymon. Quando perdemos um tipo de
liberdade, temos que simplesmente procurar por outro. Você e eu somos abençoados com a
liberdade de escolher entre bons livros, que iremos ler, quais deixaremos de lado.
Você pode olhar para as suas grades ou pode olhar através delas. Você pode ser um
exemplo para prisioneiros mais jovens ou pode se misturar com os encrenqueiros.
Você pode amar a Deus e buscar conhecê-lo ou pode virar as costas para Ele.
Até certo ponto, Waymon, estamos nisso juntos. "
Quando finalmente terminei de ler a carta, minha visão estava borrada pelas
lágrimas. Ainda assim, pela primeira vez, eu enxerguei minha mãe com clareza.
E eu a entendi. 

" 50 Histórias para Aquecer o Coração"

Criando raízes - de Philip Gulley


“Nossa força vem de nossas fraquezas.” (Ralph Waldo Emerson)

Quando eu era pequeno, tinha um velho vizinho chamado Dr. Gibbs. Ele não se
parecia com nenhum médico que eu jamais houvesse conhecido. Todas as vezes em que eu
o via, ele estava vestido com um macacão de zuarte e um chapéu de palha cuja aba da
frente era de plástico verde transparente. Sorria muito, um sorriso que combinava com seu
chapéu - velho, amarrotado e bastante gasto.
Nunca gritava conosco por brincarmos em seu jardim. Lembro-me dele como alguém
muito mais gentil do que as circunstâncias justificariam.
Quando o Dr. Gibbs não estava salvando vidas, estava plantando árvores. Sua casa
localizava-se em um terreno de dez acres, e seu objetivo na vida era transformá-lo em uma
floresta.
O bom doutor possuía algumas teorias interessantes a respeito de jardinagem. Ele
era da escola do "sem sofrimento não
há crescimento". Nunca regava as novas árvores, o que desafiava abertamente a
sabedoria convencional. Uma vez perguntei-lhe por quê. Ele disse que molhar as plantas
deixava-as mimadas e que, se nós as molhássemos, cada geração sucessiva de árvores
cresceria cada vez mais fraca. Portanto, tínhamos que tornar as coisas difíceis para elas e
eliminar as árvores fracas logo no início.
Ele falou sobre como regar as árvores fazia com que as raízes não se
aprofundassem, e como as árvores que não eram regadas tinham que criar raízes mais
profundas para procurar umidade. Achei que ele queria dizer que raízes profundas deveriam
ser apreciadas.
Portanto, ele nunca regava suas árvores. Plantava um carvalho e, ao invés de regálo
todas as manhãs, batia nele com um jornal enrolado. Smack! Slape! Pou!
Perguntei-lhe por que fazia isso e ele disse que era para chamar a atenção da
árvore.
O Dr. Gibbs faleceu alguns anos depois. Saí de casa. De vez em quando passo por
sua casa e olho para as árvores que o vi plantar há cerca de vinte e cinco anos. Estão fortes
como granito agora. Grandes e robustas. Aquelas árvores acordam pela manhã, batem no
peito e bebem café sem açúcar.
Plantei algumas árvores há alguns anos. Carreguei água para elas durante um verão
inteiro. Borrifei-as. Rezei por elas. Todos os nove metros do meu jardim. Dois anos de
mimos resultaram em árvores que querem ser servidas e paparicadas. Sempre que sopra
um vento frio, elas tremem e balançam os galhos. Árvores maricas.
Uma coisa engraçada a respeito das árvores do Dr. Gibbs: a adversidade e a
privação pareciam beneficiá-las de um modo que o conforto e a tranqüilidade nunca
conseguiriam.
Todas as noites, antes de ir dormir, dou uma olhada em meus dois filhos. Olho-os de
cima e observo seus corpinhos, o sobe e desce da vida dentro deles.
Freqüentemente rezo por eles. Rezo principalmente para que tenham vidas fáceis.
"Senhor, poupe-os do sofrimento." Mas, ultimamente, venho pensando que é hora de
mudar minha oração.
Essa mudança tem a ver com a inevitabilidade dos ventos gelados que nos atingem
em cheio. Sei que meu filhos irão encontrar dificuldades e minha oração para que isto não
aconteça é ingênua. Sempre há um vento gelado soprando em algum lugar.
Portanto, estou mudando minha oração vespertina. Porque a vida é dura, quer o
desejemos ou não. Em vez disso, vou rezar para que as raízes de meus filhos sejam
profundas, para que eles possam retirar forças das fontes escondidas do Deus eterno.
Muitas vezes rezamos por tranqüilidade, mas essa é uma graça difícil de alcançar.
O que precisamos fazer é rezar por raízes que alcancem o fundo do Eterno, para que
quando as chuvas caiam e os ventos soprem não sejamos varridos em direções diferentes.

"50 Histórias Para Aquecer o Coração"

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A Raposa e a Vinha

"Recompensou-me o SENHOR conforme a minha justiça e retribuiu-me conforme a pureza das minhas mãos, porque guardei os caminhos do Senhor e não me apartei impiamente do meu Deus" (Salmo 18:20-21).
 
Uma raposa pusera-se a namorar avidamente uma vinha tão bem cercada que não havia brecha por onde entrasse.
Deu voltas e mais voltas, até que topou um resquício entre os mourões da cerca.
Lançara-se por ele, impetuosamente, mas era tão estreito que mal pode insinuar a cabeça. Esforça-se daqui, tenta dali, mas tudo em vão. Veio-lhe, então, a idéia, um plano singular: "Se eu pudesse, monologava ela, emagrecer bastante passaria por esta brecha".
Resolvida a vencer a prova, submeteu-se a um estranho teor de vida: ficou três dias sem provar alimento, e pôs-se tão fina e magrinha que mais parecia um palito.
Toda ancha com o sucesso, esgueira-se pelo delgado vão e entra radiante, na vinha. Ali pode pagar-se de tudo quanto sofrera e passou alguns dias na mais regalada abundância.
Chegado o tempo de sair, receosa dos donos do vinhedo que não podiam tardar, corre à brecha por onde entrara e tenta meter-se por ela.
Aconteceu, porém, que a infortunada, naqueles poucos dias de regabofe, engordara tanto que não mais cabia ali.
Mais triste do que um mocho, desiste do intento e resolve repetir a provação por que passara, pondo-se, de novo, em rigoroso jejum até que, novamente magra como um esqueleto, lhe foi possível safar-se pelo agulheiro.
Estava, porém, tão fraca e debilitada, que parecia um cadáver.
Livre daquele cativeiro, olhou melancolicamente para a vinha e disse-lhe: "Adeus, não me apanharás mais. És sedutora e deliciosa. Tens em abundância frutos saborosos, mas que importa? De ti saio como entrei".
Assim o homem em relação aos bens e riquezas da vida terrena.
Ensinava o rabi Meir: O homem quando nasce tem os braços estendidos para a frente, como se dissesse: "É meu o mundo. Todo o mundo é meu!".
Quando morre, os traz ao longo do corpo, como a prevenir os que se aferram aos bens materiais: "Nada levo deste mundo. Deixo da Vida o que a Vida me deu!"

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A Árvore

Um dia, diante da velha árvore torta, um pinheiro todo vergado pelo tempo, o sábio da aldeia ofereceu a sua própria casa para aquele discípulo que "conseguisse ver o pinheiro na posição correta".

Todos se aproximaram e ficaram pensando na possibilidade de ganhar a casa e o prestígio, mas como seria "enxergar o pinheiro na posição correta"?

O mesmo era tão torto que a pessoa candidata ao prêmio teria que ser no mínimo contorcionista. Ninguém ganhou o prêmio e o velho sábio explicou ao povo ansioso que, ver aquela árvore em sua posição correta, era "vê-la como uma árvore torta".

Só isso!

Nós temos, em nós, esse jeito, essa mania de querer "consertar as coisas, as pessoas, e tudo o mais" de acordo com a nossa visão pessoal. Quando olhamos para uma árvore torta, é extremamente importante enxergá-la como árvore torta, sem querer endireitá-la, pois é assim que ela é.

Se você tentar "endireitar" a velha árvore torta, ela vai rachar e morrer, por isso é fundamental aceitá-la como ela é.

Nos relacionamentos, é comum um criar no outro expectativas próprias, esperar que o outro faça aquilo que ele "sonha" e não o que o outro pode oferecer.

Sofremos antecipadamente por criarmos expectativas que não estão alcance dos outros. Porque temos essa visão de "consertar" o que achamos errado.

Se tentássemos enxergar as coisas como elas realmente são, muito sofrimento seria poupado.

Os pais sofreriam menos com os seus filhos, pois, conhecendo-os, não colocariam expectativas, que são suas, na vida dos mesmos, gerando crianças doentes, frustradas, rebeldes e até vazias. Tente, pelo menos tente, ver as pessoas como elas realmente são, pare de imaginar como elas deveriam ser, ou tentar consertá-las da maneira que você acha melhor.

O torto pode ser a melhor forma de uma árvore crescer.

Não crie mais dificuldades no seu relacionamento, se vemos as coisas como elas são, muitos dos nossos problemas deixam de existir, sem mágoas, sem brigas, sem ressentimentos.

E, para terminar, olhe para você mesmo com os "olhos de ver" e enxergue as possibilidades, as coisas que você ainda pode fazer e não fez. Pode ser que a sua árvore seja torta aos olhos das outras pessoas, mas pode ser a mais frutífera, a mais bonita, a mais perfumada da região, e, isso, não depende de mais ninguém para acontecer, depende só de você.

O Último dos Três

O primeiro dia do mês de Moarrã do ano 785, o sultão Musa el-Hadi-Billab, califa de Bagdá, entrou mais cedo do que de costume no grande salão reservado às audiências públicas.
O poderoso monarca fazia-se acompanhar de seu grão-vizir, emires, ulemás, oficiais e guardas do palácio.
Três homens, apenas, aguardavam, naquele momento, o soberano abássida.
Era uma espécie de gigante o primeiro. Os braços hercúleos, os pulsos grossos, os ombros largos denunciavam o homem-força. Tinha, entretanto, a barba e o cabelo prematuramente embranquecidos.
O segundo mostrava a fisionomia pálida e abatida das pessoas corroídas por fundos desgostos e prolongadas preocupações e vigílias. A testa saliente, o olhar vago e o acanhado físico refletiam o homem de ciência.
Finalmente, o terceiro, que ostentava na cinta um longo punhal à maneira dos beduínos deixava ver um rosto semeado de cicatrizes e parecia, pelos movimentos arrebatados e nervosos, pelo olhar irrequieto e penetrante, um homem agitado e violento. Era um homem de ação.
O califa El-Hadi, voltando-se para os nobres muçulmanos que o acompanhavam, comentou em voz baixa:
- Que desejarão de mim estes indivíduos? Por que vieram cedo ao divã das audiências?
E fazendo ao primeiro deles, que parecia o mais velho, carinhoso aceno, permitiu-lhe que se aproximasse, enquanto os outros de pé, imóveis, esperavam a vez.
- Que desejas de mim, meu amigo? Que grave e imperioso motivo te traz à minha presença em hora tão matinal?
- Emir dos Crentes - respondeu o desconhecido inclinando-se respeitoso -, venho pedir-vos um grande favor. Há vinte anos que sirvo às vossas ordens e tenho desempenhado as minhas obrigações com lealdade e coragem. De há tempos a esta parte, o trabalho começa, porém, a pesar-me e crescente esmorecimento me invade. Quero voltar para a pequenina aldeia em que nasci e onde tenciono passar sossegado de corpo, senão de espírito, os últimos anos que pela vontade de Allah me restam ainda de vida. Solicito-vos, ó Rei Venturoso, a necessária licença e um auxílio para a viagem. Creio ter feito jus a essa recompensa, pois esgotei as forças e malbaratei o coração no desempenho do encargo que me destes. Sinto-me, na verdade, cansado.
- Cansado? - insistiu o sultão. - Cansado de quê? Parece-me ainda um homem forte e apto para o trabalho.
- Ó Emir dos Crentes! - retorquiu com firmeza o velho - por mais inverossímil que vos pareça não quero ocultar a verdade: estou cansado de matar!
- De matar? - interrogou sobressaltado o monarca. - Quem és afinal e onde foste buscar essa espécie de canseira?
- Que Allah vos conserve, ó Rei - tornou o interpelado. - Sou Acrema, o carrasco da corte. Tenho executado já muitos condenados à morte e sinto-me enfadado desse ofício execrando. Quero partir para aguardar tranqüilo na aldeiazinha em que nasci o termo dos meus dias soturnos.
- Tens razão - concordou o califa. - Terás o auxílio necessário à viagem. Podes partir!
Voltando-se para o segundo dos súditos, o de rosto macerado, o soberano renovou a pergunta que fizera ao primeiro:
- Por que desejas sair de Bagdá?
- Que Allah, o Exaltado, vos cubra de benefícios - disse, aproximando-se com o devido respeito. - Venho também solicitar-vos uma grande mercê. Quero também abandonar esta cidade para ir morar com um filho meu que tem uma propriedade para além das montanhas de Helif. Sei que amanhã parte para Mossul uma das vossas caravanas e venho pedir-vos permissão para ir em companhia dos vossos guias e auxiliares, pois assim tenho a certeza de fazer viagem segura pelas estradas mais perigosas do deserto.
- E por que coisa trocas tu esta formosa Bagdá - perguntou, curioso, o califa - pelos melancólicos cerros de Helif?
- Sinto-me fatigado, ó Rei Magnânimo - acudiu logo o interlocutor.
- Fatigado? - repetiu o califa. - De que?
- Estou fatigado - obtemperou plácida e tristemente o muçulmano - estou fatigado de ver morrer!
Por Allah! - refletiu o sultão. - Aquele homem, simples e modesto, de fisionomia serena e bondosa, alegava, com a maior calma e naturalidade, que estava cansado de ver morrer! Quem seria ele, e que estranhas funções exerceria?
- Comendador dos Crentes! - começou o desconhecido - embora vos pareça insólita a minha resposta, ela exprime a inteira verdade. Estou, positivamente, cansado de ver morrer! E, afinal, nada mais simples: sou médico. Na piedosa e nobre profissão que exerço, encontro-me quase sempre em luta desigual com a Morte: os fracos recursos da ciência a que dei o melhor das minhas energias, não permitem que possa o homem sair vitorioso dessa luta desequilibrada. Assim é que muitas vezes tenho visto morrer nestes braços, depois de tudo tentar, pessoas queridas, entes necessários à vida de outros entes!  A princípio as agonias do trespasse me deixavam indiferente. Agora, porém, velho e alquebrado, não mais quero continuar nesta vida, em que se por vezes tive pequenos júbilos, ao atenuar os padecimentos de outrem, muitas mais vi a morte trazer a corações generosos a miséria, o luto, a desesperação! - Presenciar alheias tristezas e angústias deixou-me também angustiado e triste. Quero, pois, afastar-me de onde a cada passo encontro um infortúnio que sangra ao lado de um infortúnio iminente!
- Dou-te inteira razão - afirmou o rei. - Partirás na primeira caravana com as regalias e deferências que mereces.
E dirigindo-se, por fim, ao último solicitante, o sultão interrogou-o nos mesmos termos:
- E tu, meu filho, que queres de mim?
- Rei Generoso! - exclamou o último dos três, beijando humildemente a terra entre as mãos. - Que Allah, o Sábio, o justo, vos conserve por muitos anos e vos cubra de bênçãos! Venho à vossa presença esperançado em obter da vossa incomparável bondade a mesma concessão que os meus dois companheiros lograram alcançar!
- Por Maomé! ó meu amigo! - observou o rei, sorridente e irônico. - Será possível que também tu te sintas cansado?
E disposto a pilheriar um pouco, para divertir os nobres que assistiam à cena, acrescentou folgazão:
- Estarás cansado, meu amigo, de matar ou de ver morrer?
- Estou cansado, ó Emir dos Crentes! - respondeu o desconhecido sem se embaraçar e como se correspondesse à pilhéria, - estou justamente cansado de matar e de ver morrer!
Emires, ulemás, oficiais, todos fitavam assombrados o filaucioso, certos de que o atrevido beduíno iria pagar bem caro tamanho atrevimento.
- Estou cansado de matar - confessou ele com sincera e deliberada veemência, - e cansado estou também de ver morrer os meus irmãos, os meus amigos, os meus companheiros!
- Quem és, afinal? - bradou o sultão arrebatadamente, a fisionomia carregada, os olhos fuzilantes. - Quem és tu, gênio do mal, que matas como o carrasco e, a exemplo do médico, vês morrer os teus amigos e irmãos?
Perfilando-se e erguendo repentinamente a fronte como para mostrar bem os gilvazes do rosto, o homem respondeu, com uma saudação militar:
- Rei! - eu sou o Soldado!