sexta-feira, 26 de julho de 2013

Um Copo de Água Fria (Episódio da grande guerra)


Durante uma longa viagem em estrada de ferro, estava eu, há algum tempo, num dia de
extenuante calor, em companhia dum oficial de cavalaria, que tinha tomado parte em
alguns combates na grande guerra.
Contou-nos alguns episódios, mas nenhum me impressionou tanto como o que se segue:
-  Foi,  dia  ele,  no  dia  seguinte  ao  duma  vitória  custosamente  ganha  com  esforços  e
cansaço  extraordinários.  Tinham-me  encarregado  de  levar  uma  ordem  importante  à
retaguarda,  quando,  no  momento  de  partir,  o  meu  cavalo,  estafado,  recusou  marchar;
mancava  e  não  podia  mesmo  caminhar.  Sem  demora,  fui buscar  outro;  este  era  tão
bravo e manhoso, que alguns minutos se passaram antes que me tivesse sido possível
montá-lo e sujeitá-lo à obediência. Empinava, escoiceava e quando eu estava quase  a
vencê-lo, estacava ao menor obstáculo e continuava os seus pinotes.
Entretanto,  era  preciso  apressar-me;  a  mensagem  de  que  eu  era  portador  não  admitia
nenhuma demora, e a estrada, obstruída com tropas e materiais, dificultava ainda mais a
minha  viagem.  Era  meio-dia  e  estava  apenas  a  meio  caminho.  O  ar  estava  pesado  e
abafadiço; nuvens de pó secavam-me a garganta. Estava esfalfado o meu cantil estava
vazio, sentia-me a desfalecer. Numa volta do caminho descobri uma fonte abundante,
junto da qual alguns soldados descansavam e enchíamos seus cantis.
Desejava  descer  para  fazer  o  mesmo,  mas  o  cavalo,  como  que  pressentindo  a  minha
intenção,  deu  pinotes  tão  furiosos,  que  tive  de  renunciar  à  minha  tentativa,  para  não
excitar os risos grosseiros do acampamento.
Aborrecido  com  este  contratempo,  desatei  o  meu  cantil  e,  dirigindo-me  a  um  dos
soldados, o único que parecia não se rir do meu infortúnio, estendi-lho, pedindo-lhe que
mo enchesse.
Era de mau aspecto, de sobrecenho carregado; ainda  assim estava eu longe de esperar
resposta tão cruel:
- Encha-o você !
Diante destas palavras, a minha cólera não teve limites.
- Desgraçado ! - gritei-lhe; - tomara um dia o encontre a morrer de sede e a pedir um
copo de água fria, para eu ter também o prazer de lho recuar !
Em seguida, dei de esporas ao cavalo e parti numa corrida desenfreada, sem fazer caso
dos convites dos outros soldados, que me gritavam que voltasse.
Uma légua depois um rapazinho, compadecido, deu-me  água, a mim e ao meu cavalo.
Em troca dei-lhe um punhado de dinheiro, mas, comparando a prontidão que ele teve
em me servir com a conduta dos meus companheiros d'armas, senti como que uma onda
de ódio a revolver-se dentro de mim.
O  rosto  daquele  soldado  gravou-se-me  em  traços  indeléveis  na  imaginação;  e  jurei
procurá-lo - Deus me perdoe ! - até me poder vingar. Durante dois anos, nos campos de
batalha, entre os moribundos, continuei sem resultado esta busca ímpia. Enfim, chegou
o dia.
Em resultado de alguns ferimentos fui levado para um hospital de guerra. Não estando
ainda  em  estado  de  retomar  o  meu  serviço,  empregava o  tempo  a  cuidar  dos  que
estavam mais feridos do que eu.
Nunca  me  senti  tão  compadecido  para  com  os  pobres  soldados  como  no  meio  destas
cenas de dor e de sofrimento, das quais os campos de batalha não dão ideia nenhuma.
Tinha verdadeiro prazer em aliviar-lhes as dores e alegrá-los.
No meio destas novas ocupações, esqueci o meu "inimigo." Era assim que eu chamava
ainda aquele que me tinha recusado o copo d'água fria.
Depois  duma  grande  batalha,  muitos  feridos  vieram  para  o  nosso  hospital.  Todas  as
salas ficaram repletas; o calor era medonho, e os doentes sofriam cruelmente de sede e
da atmosfera abrasadora da sala. De todas as camas gritavam: Água ! Água ! Água !
Peguei num copo e num balde d'água gelada, e fui de fileira em fileira, distribuindo o
líquido precioso a todos os que o pediam. Só o cair da água no copo já lhes fazia brilhar
a alegria nos olhos abrasados pela febre.
Quando eu andava pelo meio das coxias entre as camas, um homem deitado do outro
lado da sala levantou-se de repente, gritando:
- Água ! Água ! pelo amor de Deus !
Fiquei horrorizado. Tudo o que me cercava desapareceu aos meus olhos e não via senão
a ele. Era o que me tinha recusado um copo de água fria !
Aproximei-me, mas não me reconheceu. Caiu exausto sobre o travesseiro, com o rosto
voltado  para  a  parede.  Então  senti  comprimir-se-me  a  alma,  ouvi  uma  voz  dentro  de
mim a dizer distintamente:
- Faze-lhe ouvir o barulho da água, passa e torna a passar diante dele, dá a todos os que
o cercam e não a ele. Vinga-te. !
Mas ao mesmo tempo ouvi o murmúrio doutra voz. Uns dizem que era a voz da minha
consciência;  outros  a  de  Deus,  e  outros  ainda  o  resultado  das  lições  de  minha  mãe.
Fosse qual fosse, esta voz dizia:
- Meu amigo, é hoje o dia propício e a hora de pagar o mal com o bem, de perdoar,
como Jesus te perdoou. Vai e dá de beber ao teu inimigo.
Um movimento involuntário me arrastou para a sua cama; amparei-lhe a cabeça com o
braço e aproximei o copo dos seus lábios febris.
Oh ! como bebeu ! nunca esquecerei sua expressão de alívio e o olhar que me lançou,
sem pronunciar palavra. Vi que estava profundamente comovido.
O  pobre  teve  de  sofrer  amputação  de  uma  perna  e  pedi  ao  médico  autorização  para
tomar sob os meus cuidados.
Tratava-o dia e noite. Durante muito tempo conservou o mesmo silêncio, até que um
dia, quando me afastava de sua cama, agarrou-me pelo paletó e, puxando-me para bem
junto de si, disse-me em voz baixa:
- Lembra-se você do dia em que me pediu de beber?
- Sim, camarada; mas o que lá vai, lá vai. Isso acabou.
- Para mim não, continuou; não sei o que tinha naquele dia; o capitão acabara de me
repreender;  tinha  febre,  estava  encolerizado.  Poucos  instantes  depois  fiquei
envergonhado com a minha conduta, mas era tarde demais. Há dois anos que o procuro
para lhe pedir perdão. Quando reconheci aqui, lembrei-me do que me tinha dito e tive
medo. Diga-me: Você me perdoa ?
Eu tinha-o procurado dois anos para me vingar; ele me procurou para se humilhar e me
pedir perdão. Qual dos dois tinha seguido melhor o espírito de Cristo? Certa confusão se
apoderou de mim.
-  Camarada,  disse-lhe  eu  depois  de  uma  pausa  -  você é  muito  melhor  que  eu;  não
falemos mais nisso!
Eu estava presente quando lhe fizeram a amputação. Já o amava como a um irmão. Ele
sabia  que  ia  morrer,  mas  antes  confiou-me  alguns  objetos  para  mandar  a  sua  irmã
juntamente com uma carta que me ditou. Perguntou-me se não haveria na Bíblia uma
passagem que tratasse dum copo de água.
- Peço a você, disse-lhe eu, que não torne a falar nisso. Mas ele continuou:
- Você não sabe, meu fiel amigo, o bem que fez em não me recusar o copo de água.
Naquela  noite  a  febre  do  doente  aumentou  e  por  vezes  parecia  delirar.  Contudo
percebia-se que a sua confiança em Jesus Cristo era completa. Tinha a certeza de estar
salvo. Assim o mostrava nas suas orações.
Pela madrugada, mexeu-se, acomodou a cabeça no travesseiro, e fechou os olhos para
os não abrir mais neste mundo. Tinha adormecido para só acordar na eternidade.
Ao vê-lo morrer assim tranqüilo e consolado, que grande prazer senti em ter-lhe dado de
beber,  pagando-lhe  assim  o  mal  com  o  bem!  Lembrei-me  então  destas  palavras  de
Jesus: "Todo o que der a beber a um daqueles pequeninos um copo de água fria, não
perderá a sua recompensa."

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