O primeiro dia do mês de Moarrã do ano 785, o sultão Musa el-Hadi-Billab, califa de Bagdá, entrou mais cedo do que de costume no grande salão reservado às audiências públicas.
O poderoso monarca fazia-se acompanhar de seu grão-vizir, emires, ulemás, oficiais e guardas do palácio.
Três homens, apenas, aguardavam, naquele momento, o soberano abássida.
Era uma espécie de gigante o primeiro. Os braços hercúleos, os pulsos grossos, os ombros largos denunciavam o homem-força. Tinha, entretanto, a barba e o cabelo prematuramente embranquecidos.
O segundo mostrava a fisionomia pálida e abatida das pessoas corroídas por fundos desgostos e prolongadas preocupações e vigílias. A testa saliente, o olhar vago e o acanhado físico refletiam o homem de ciência.
Finalmente, o terceiro, que ostentava na cinta um longo punhal à maneira dos beduínos deixava ver um rosto semeado de cicatrizes e parecia, pelos movimentos arrebatados e nervosos, pelo olhar irrequieto e penetrante, um homem agitado e violento. Era um homem de ação.
O califa El-Hadi, voltando-se para os nobres muçulmanos que o acompanhavam, comentou em voz baixa:
- Que desejarão de mim estes indivíduos? Por que vieram cedo ao divã das audiências?
E fazendo ao primeiro deles, que parecia o mais velho, carinhoso aceno, permitiu-lhe que se aproximasse, enquanto os outros de pé, imóveis, esperavam a vez.
- Que desejas de mim, meu amigo? Que grave e imperioso motivo te traz à minha presença em hora tão matinal?
- Emir dos Crentes - respondeu o desconhecido inclinando-se respeitoso -, venho pedir-vos um grande favor. Há vinte anos que sirvo às vossas ordens e tenho desempenhado as minhas obrigações com lealdade e coragem. De há tempos a esta parte, o trabalho começa, porém, a pesar-me e crescente esmorecimento me invade. Quero voltar para a pequenina aldeia em que nasci e onde tenciono passar sossegado de corpo, senão de espírito, os últimos anos que pela vontade de Allah me restam ainda de vida. Solicito-vos, ó Rei Venturoso, a necessária licença e um auxílio para a viagem. Creio ter feito jus a essa recompensa, pois esgotei as forças e malbaratei o coração no desempenho do encargo que me destes. Sinto-me, na verdade, cansado.
- Cansado? - insistiu o sultão. - Cansado de quê? Parece-me ainda um homem forte e apto para o trabalho.
- Ó Emir dos Crentes! - retorquiu com firmeza o velho - por mais inverossímil que vos pareça não quero ocultar a verdade: estou cansado de matar!
- De matar? - interrogou sobressaltado o monarca. - Quem és afinal e onde foste buscar essa espécie de canseira?
- Que Allah vos conserve, ó Rei - tornou o interpelado. - Sou Acrema, o carrasco da corte. Tenho executado já muitos condenados à morte e sinto-me enfadado desse ofício execrando. Quero partir para aguardar tranqüilo na aldeiazinha em que nasci o termo dos meus dias soturnos.
- Tens razão - concordou o califa. - Terás o auxílio necessário à viagem. Podes partir!
Voltando-se para o segundo dos súditos, o de rosto macerado, o soberano renovou a pergunta que fizera ao primeiro:
- Por que desejas sair de Bagdá?
- Que Allah, o Exaltado, vos cubra de benefícios - disse, aproximando-se com o devido respeito. - Venho também solicitar-vos uma grande mercê. Quero também abandonar esta cidade para ir morar com um filho meu que tem uma propriedade para além das montanhas de Helif. Sei que amanhã parte para Mossul uma das vossas caravanas e venho pedir-vos permissão para ir em companhia dos vossos guias e auxiliares, pois assim tenho a certeza de fazer viagem segura pelas estradas mais perigosas do deserto.
- E por que coisa trocas tu esta formosa Bagdá - perguntou, curioso, o califa - pelos melancólicos cerros de Helif?
- Sinto-me fatigado, ó Rei Magnânimo - acudiu logo o interlocutor.
- Fatigado? - repetiu o califa. - De que?
- Estou fatigado - obtemperou plácida e tristemente o muçulmano - estou fatigado de ver morrer!
Por Allah! - refletiu o sultão. - Aquele homem, simples e modesto, de fisionomia serena e bondosa, alegava, com a maior calma e naturalidade, que estava cansado de ver morrer! Quem seria ele, e que estranhas funções exerceria?
- Comendador dos Crentes! - começou o desconhecido - embora vos pareça insólita a minha resposta, ela exprime a inteira verdade. Estou, positivamente, cansado de ver morrer! E, afinal, nada mais simples: sou médico. Na piedosa e nobre profissão que exerço, encontro-me quase sempre em luta desigual com a Morte: os fracos recursos da ciência a que dei o melhor das minhas energias, não permitem que possa o homem sair vitorioso dessa luta desequilibrada. Assim é que muitas vezes tenho visto morrer nestes braços, depois de tudo tentar, pessoas queridas, entes necessários à vida de outros entes! A princípio as agonias do trespasse me deixavam indiferente. Agora, porém, velho e alquebrado, não mais quero continuar nesta vida, em que se por vezes tive pequenos júbilos, ao atenuar os padecimentos de outrem, muitas mais vi a morte trazer a corações generosos a miséria, o luto, a desesperação! - Presenciar alheias tristezas e angústias deixou-me também angustiado e triste. Quero, pois, afastar-me de onde a cada passo encontro um infortúnio que sangra ao lado de um infortúnio iminente!
- Dou-te inteira razão - afirmou o rei. - Partirás na primeira caravana com as regalias e deferências que mereces.
E dirigindo-se, por fim, ao último solicitante, o sultão interrogou-o nos mesmos termos:
- E tu, meu filho, que queres de mim?
- Rei Generoso! - exclamou o último dos três, beijando humildemente a terra entre as mãos. - Que Allah, o Sábio, o justo, vos conserve por muitos anos e vos cubra de bênçãos! Venho à vossa presença esperançado em obter da vossa incomparável bondade a mesma concessão que os meus dois companheiros lograram alcançar!
- Por Maomé! ó meu amigo! - observou o rei, sorridente e irônico. - Será possível que também tu te sintas cansado?
E disposto a pilheriar um pouco, para divertir os nobres que assistiam à cena, acrescentou folgazão:
- Estarás cansado, meu amigo, de matar ou de ver morrer?
- Estou cansado, ó Emir dos Crentes! - respondeu o desconhecido sem se embaraçar e como se correspondesse à pilhéria, - estou justamente cansado de matar e de ver morrer!
Emires, ulemás, oficiais, todos fitavam assombrados o filaucioso, certos de que o atrevido beduíno iria pagar bem caro tamanho atrevimento.
- Estou cansado de matar - confessou ele com sincera e deliberada veemência, - e cansado estou também de ver morrer os meus irmãos, os meus amigos, os meus companheiros!
- Quem és, afinal? - bradou o sultão arrebatadamente, a fisionomia carregada, os olhos fuzilantes. - Quem és tu, gênio do mal, que matas como o carrasco e, a exemplo do médico, vês morrer os teus amigos e irmãos?
Perfilando-se e erguendo repentinamente a fronte como para mostrar bem os gilvazes do rosto, o homem respondeu, com uma saudação militar:
- Rei! - eu sou o Soldado!