A Sombra do Cavalo

Há um velho provérbio árabe que diz: "Trata do teu cavalo e tratarás de ti próprio".

Salim el-Macalia, rico mercador de Meca, não atendia, porém, aos sábios ensinamentos dessa grande verdade. Pouco importavam a ele as palavras santas do Alcorão e os sábios conselhos do Profeta. Se alguém o censurava por maltratar o pobre cavalo, ele retorquia: - "Tenho dinheiro. Se ele morrer, compro outro".

O certo é que um dia, sob o sol causticante da Arábia, quando jornadeava el-Macalia, o cavalo em que ele montava caiu de repente de cansaço e fome e ali mesmo, no meio da estrada, morreu.

Não se perturbou o mercador com o triste fim do pobre animal. Tomou nos ombros o seu saco de viagem e continuou a pé o trecho que faltava da jornada.

Um curioso fato, porém, começou a despertar a atenção de Salim. É que todas as pessoas que o encontravam na estrada, pareciam fugir espavoridas.

- Por Allah! - pensou. - Pelas barbas do Profeta! Que tenho eu hoje, que todos se afastam e fogem de mim?

Numa curva do caminho veio-lhe ao encontro um nômade do deserto. Antes que o desconhecido lhe fugisse, Salim o agarrou e disse-lhe atiçado por ímpeto de raiva:

- Desgraçado! Por que queres também fugir de mim?

Trêmulo, hesitante, o pobre beduíno respondeu:

- É que... o senhor... está ... com a sombra de um cavalo!

Foi então que o maldoso Salim olhou para o chão. A seus pés projetava-se, não a sombra comum de um homem, mas nítida e perfeita, a sombra de um cavalo. - Lá estavam as orelhas longas, o dorso arqueado, a cauda.

Tomado de indizível terror Salim el-Macalia percebeu a extensão imensa de sua desgraça.

O cavalo que pouco antes havia morrido deixara-lhe, como herança diabólica, aquela sombra maldita que o havia de acompanhar para o resto da vida.

Correu célebre a extraordinária notícia. As caravanas que voltavam da Cidade Santa espalhavam pelas aldeias e oásis aquela novidade famosa:

- Salim, o mercador, tem sombra de cavalo!

Em Meca, uma verdadeira multidão de curiosos esperava ansiosa pela volta do condenado. Mas este só entrou na cidade quando já era noite escura. Mesmo assim, ao passar pela porta de uma hospedaria, teve sem querer a sua sombra medonha projetada na parede. Uma menina assustada gritou:

- Ali está o homem que tem a sombra de cavalo!

Antes que os gaiatos o seguissem com apupos e zombarias, Salim fugiu. E a sua vida, desse momento em diante, foi um fugir constante. O infeliz não podia aparecer na cidade, senão aproveitando a escuridão da noite. Assim mesmo só andava nos lugares sombrios, sem iluminação.

A sua existência era um inferno. Afinal, já desesperado, Salim resolveu consultar um velho imã que era notável pelas suas curas e milagres.

- Faze o bem que puderes, meu amigo - disse-lhe o marabu - e essa sombra não mais te seguirá.

Salim seguiu fielmente o conselho. Socorreu os pobres, os enfermos e as crianças. Gastou, enfim, uma grande parte de seus bens auxiliando os fracos e infelizes.

Coisa interessante! A proporção que ele praticava o bem, a tal sombra de cavalo ia desaparecendo, e a sua sombra ia retomando a forma primitiva.

Um dia, enfim, tendo Salim saído em pleno sol, para salvar uma criança que fora atacada por um cão bravio, notou que a antiga sombra voltara a ocupar o seu lugar.

Desse dia em diante ninguém mais zombou dele. Pelo contrário: Salim el-Macalia tornou-se um homem respeitado e querido. Quando passava todos o saudavam:

- Que Allah proteja o bondoso el-Macalia! É bom para os homens e para todos os animais!

E o velho sacerdote dizia sempre, com pausados meneios de sua bela cabeça encanecida:

- O que acompanhava o rico mercador não era uma sombra e sim o remorso. O remorso toma todas as formas e aspectos, para castigar os homens sem piedade que praticam más ações.