Interessante seria, meu bom amigo, iniciar este conto à maneira dos escritores clássicos israelitas, citando cinco ou seis pensamentos admiráveis, colhidos nas páginas famosas do Talmude.
Como recordar-me, porém, dos trechos mais belos da Sabedoria de Israel, quando é tão fraca, incerta, e claudicante a minha memória? Vem-me apenas à lembrança, neste momento, um velho provérbio muito citado pelos judeus russos: "Quando o homem é feliz, um dia lhe vale um ano".
A verdade contida nesse aforismo é indiscutível. E a história, que a seguir vou narrar, poderá servir para ilustrar a minha asserção.
Vivia em Viena, há mais de meio século, um jovem chamado David Kirsch, filho de um milômed, homem prudente e sensato.
Kirsch adornava o seu espírito com uma qualidade bastante apreciável: não ousava tomar resolução alguma de certa relevância sem se sentir esclarecido e orientado pelos conselhos dos mais velhos. Quando pensou em casar-se ouviu de seu judicioso pai a seguinte recomendação:
Cabe-me dizer-te, meu filho, que deverás evitar qualquer casamento, quando do consórcio resultar aproximação, por parentesco, com um roiter-id (judeu vermelho).
E acrescentou, em tom grave, com a prudência que a longa experiência da vida sói ensinar aos homens:
- Se algum dia, porém, por triste fatalidade, caíres nas garras de um roiter-id, procura sem demora o auxílio de outro roiter-id.
Quis o jovem David, com grande empenho, conhecer, mais por curiosidade do que por outro motivo, a razão de ser daquele estranho conselho, mas o velho milômed recusou-se terminantemente a dar sobre o caso qualquer explicação, alegando que tinha para assim proceder motivos que de consciência não poderia revelar.
Algumas semanas depois o jovem David Kirsch foi procurado por um schatchhen, isto é, por um agenciador de casamentos.
Trocadas as saudações habituais - Scholem Aleichem! Aleichem Scholem - o schatchhen, assim falou assumindo, como sempre, um ar de máxima reserva e discrição:
- Como sei que pretendes resolver do melhor modo possível o problema de teu futuro, com a escolha de uma companheira digna, quero informar-te de que obtive para o teu caso uma solução admirável. A noiva que tenho em vista é formosa, de família honesta e, além do mais, muito culta e prendada.
- E o dote? - indagou David grandemente interessado, procurando tocar com a máxima finura naquele assunto tão delicado.
- Quanto ao dote - aclarou logo o schatchhen com um sorriso que traduzia o orgulho de bom profissional - está combinado que será de mil coroas e terás, ainda, dez anos de "kest"!
- Dez anos de kest! - repetiu David, numa sinceridade de veemente surpresa. Mas isto é espantoso, inacreditável!
Sou forçado a interromper a presente narrativa para dar ao leitor não-judeu, isto é, ao meu bom amigo gói um esclarecimento que me parece indispensável.
O kest é costume tradicional entre os judeus. O pai da noiva, além do dote (que é de uso também entre os cristãos) concede ao genro, a título de auxílio para iniciar a vida, a permissão de viver durante algum tempo em sua casa, sem fazer a menor despesa, quer com a alimentação, quer mesmo com o vestuário. Esse período, durante o qual o pai da jovem toma a seu cargo a subsistência completa dos recém-casados, é denominado kest e, em geral, varia de um a três anos. Para um jovem egoísta, sem ânimo para a vida, pouco inclinado ao trabalho, a oferta de um kest prolongado constitui uma isca irresistível. Era esse precisamente o caso de David Kirsch, indolente como um falso mendigo, amigo da boa-vida e do feriado permanente.
- Dez anos de kest?
Um judeu sensato não poderia hesitar. A cerimônia do noivado, com a clássica apresentação das famílias, foi marcada para alguns dias depois.
Quando David Kirsch foi levado à presença da sua noiva ficou maravilhado: o schatchhen não o havia iludido pintando com as cores vivas do exagero os encantos da noiva prometida. A menina era uma judia realmente graciosa, esbelta, cheia de vida, e os dez anos de kest emprestavam-lhe ao olhar, ao sorriso e aos lábios todos os ímãs inconcebíveis da beleza. Rebla, a filha do rei de Gorner, não parecera mais sedutora aos olhos do grande Salomão! Dela diria certamente o poeta: "De longe parece uma estrela; de perto, uma flor".
Dolorosa foi, porém, a surpresa do noivo judeu ao defrontar, pela primeira vez, com o seu futuro sogro. Pela cor fulva dos cabelos, pelas sardas que repintavam o carão avermelhado, era o velho um tipo perfeito e inconfundível do roiter-id!
Naquele momento, invadido por negrejante inquietação, recordou-se David do conselho que a prudência paterna lhe ditara: "Evitar qualquer aproximação, pelo casamento, com um roiter-id"! Mas que fazer naquela dependura? A sua palavra estava dada; ademais, acima de qualquer compromisso, esmagando dúvidas e receios, os dez anos de kest constituíam um argumento irrespondível diante do qual desapareciam todos os motivos que militavam contra o consórcio que se lhe afigurava tão promissor.
Pouco tempo depois realizou-se o enlace nupcial e o jovem passou a viver com sua adorada esposa o seu belo período de kest, em casa do rico roiter-id.
- Esse judeu vermelho - pensou David altamente desconfiado com o caso - alguma peça desagradável prepara para mim. Custa-me acreditar que ele mantenha essa liberalíssima promessa dos dez anos de kest. Naturalmente aqui, em sua casa, terei um tratamento tão vil e humilhante, que nem mesmo um cão seria capaz de aturar, e ao fim de dois ou três meses, é certo, serei forçado, pela situação, a procurar outro pouso e trabalho. Alguma perfídia o meu sogro já planejou contra mim!
Com grande espanto, entretanto, o jovem David verificou que o pai de sua esposa. era de um feitio que desmentia por completo seus temores e desconfianças. O roiter-id mostrava-se delicado e afetuoso, e dispensava ao seu novo genro um tratamento principesco. Fazia multiplicar os pratos saborosos nas refeições, proporcionava-lhe passeios agradabilíssimos, dava-lhe roupas finas e enchia-o de presentes valiosos.
- Meu pai não tinha razão - meditava o jovem, refletindo sobre a vida regalada e invejável que desfrutava em casa de seu sogro - Que outro marido poderá ser mais feliz do que eu? Rivekelê (Raquel), a minha esposa, é encantadora; por longo prazo, sem o menor trabalho, preocupação ou contrariedade terei, nesta casa, mesa sempre lauta, agasalho, carinho e consideração!
Ao cabo de alguns dias o velho roiter-id chamou o indolente marido de sua filha e interpelou-o muito sério:
- Dize-me, ó David! És, na verdade, feliz na tua nova situação de homem casado e chefe de família?
- Muito feliz, meu sogro - confirmou o jovem, num retraimento de espanto - Sinto-me, aqui, incomparavelmente feliz!
- Se assim é - tornou gravemente o judeu vermelho medindo-o de alto abaixo - se é assim, o teu kest está terminado!
- Terminado o meu kest? - protestou atônito o marido parasita. - Mas se eu estou casado há pouco mais de uma semana! Como pode ser isto?
- Como pode ser? - repetiu o sogro num tom muito mais sério, tomando uma atitude que irradiava antipatia. - Nada mais simples. Vou provar claramente. Estás casado com minha filha há dez dias. Bem sabes que no livro dos provérbios encontramos exarada esta sentença: "'Quando um homem é feliz, um dia vale um ano". Logo, de acordo com esse tradicional provérbio, estás casado há dez anos! Amanhã, portanto, levarás de minha casa tua esposa e irás para a tua residência. Creio que deverás, também, procurar um emprego, um meio qualquer de vida, pois de mim já recebeste o necessário auxílio, o dote e o kest prometidos.
E o nosso herói, diante da imposição do sogro, sentiu-se presa de grande furor. Quis apresentar argumentos que militavam em seu favor, mas o astucioso roiter-id manteve-se intransigente e não houve como levá-lo a reconsiderar a resolução que havia tomado, insistindo em afirmar que nada mais fazia senão atender a verdade contida no provérbio: "Quando o homem é feliz, um dia vale um ano".
Não se conformava David Kirsch com a idéia de ser obrigado a trabalhar para viver; e a situação a que fora, de repente atirado, envenenou-lhe o espírito com todas as toxinas do rancor. Tinha sido, a seu ver, indigno o proceder do pai de Rivekelê. Prometera-lhe, sob palavra, dez anos de kest e depois, por evidente má-fé, baseando-se num idiota brocardo judeu, reduzira o prazo a dez dias! Que tratante! Era um grande velhaco o roiter-id! Quando o interesse estava em jogo sabia transformar um simples provérbio em lei social!
Meu pai tinha razão - murmurou David, recalcando os seus rancorosos impulsos toda razão tinha meu Pai! Pratiquei uma imprudência muito séria, fazendo-me surdo aos conselhos daquele que melhor do que eu deve conhecer a vida e os filhos de Israel!
E, resolvido a não incidir uma vez mais no erro, o jovem, recordando-se da segunda parte do conselho paterno foi, nesse mesmo dia, procurar um conhecido seu chamado Elias Bloch, também judeu vermelho, e pediu-lhe indicasse um meio que lhe permitisse sair da situação crítica em que se encontrava.
O inteligente Elias Bloch atendeu com amabilidade o jovem David e depois de ouvir o minucioso relato da burla do kest, expediu uma risadinha seca e maldosa, e respondeu com um relâmpago de inspiração no olhar:
- Não vejo dificuldade alguma em resolver o teu caso. Irás amanhã a casa de teu sogro, e se seguires as minhas instruções sairás vencedor nesse litígio.
No dia seguinte David Kirsch, tendo nas mãos um exemplar da Torá - que é o livro da lei entre os hebreus - foi ter à rica vivenda do seu astucioso sogro.
Depois de saudar o velho roiter-id com certa reserva e cerimônia, como se as relações entre ambos estivessem profundamente abaladas, assim falou com teatral entonação.
- Por motivos muito graves sou forçado a vir agora à sua presença. Vou divorciar-me!
Divórcio! Esta palavra para a família judaica representa uma desgraça só comparável às maiores calamidades.
- Estás louco, rapaz! - protestou o velho empalidecendo ligeiramente - Bem sabes que o divórcio só pode ser obtido segundo a lei de Moisés. Que motivo poderá ser aduzido para justificativa dessa nódoa infamante com que pretendes golpear a minha família?
- Tenho a lei a meu favor - acudiu com altivez o moço. - Como o senhor mesmo declarou e provou, vivi em sua companhia os dez anos de kest. Os doutores e rabis não ignoram que o Livro da Lei de Moisés - a Torá - diz com a maior clareza: "Quando a mulher não concebe ao fim de dez anos, o marido pode requerer o divórcio". Ora, estou casado há dez anos e não tenho filhos; cabe-me, portanto, segundo a Lei, o direito de repudiar minha esposa!
- Que brincadeira é essa, meu filho! – retorquiu o roiter-id, emergindo da sua estupefação e abraçando amavelmente o genro. - Afastemos de nós as idéias tristes, pois já não foi pequeno o susto com que abalaste meu coração de pai. Fizeste mal em tomar a sério o meu gracejo sobre o tal provérbio dos dias felizes, e se assim é, fica o dito pelo não-dito. Se eu prometi dez anos de kest é certo que poderás viver todo esse tempo em minha casa.
E concluiu com um gesto convencido e superior, passando lentamente a mão pelos cabelos avermelhados:
- Jamais deixei, menino, como bom judeu, de cumprir a palavra dada.
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