Nas perigosas montanhas que os persas denominam "tabaquir", os guardas que vigiavam a fronteira surpreenderam, ao abrir da manhã, antes da primeira prece, um pequeno grupo de contrabandistas.
Três deles conseguiram fugir. Outro, que resistiu de arma na mão, foi morto pelos soldados. Um apenas, que se deixara ficar encostado a uma pedra, foi aprisionado e conduzido no mesmo dia à presença do rei Charlar, apelidado "O Inflexível".
O soberano, depois de consultar dois íntegros e sábios juízes e saber os termos da lei, declarou que o contrabandista preso nos cerros de Iabaquir estava condenado à morte.
Ao ouvir a grave sentença o prisioneiro pediu permissão para falar.
Fala! - concedeu o rei.
- O meu nome - começou o prisioneiro - é Monir Salomão. Arrastado pela negra e torpe ambição de enriquecer rapidamente aliciei-me com aqueles que exercem a execranda profissão de contrabandistas. O castigo cai, pois, sobre mim, merecidamente. Desejo apenas formular um pedido. Tenho mulher e filhos. Minha família mora numa pequenina aldeia muito longe desta cidade. Se eu morrer agora, meus filhos e minha esposa ficarão inteiramente sem recursos e abandonados. Rogo, pois, que me seja concedido o prazo de um ano para regularizar os meus negócios e amparar aqueles que me são caros. Findo esse prazo voltarei a esta cidade para que, contra mim, seja cumprida a sentença de morte.
- Embora me pareça estranho o teu pedido - retorquiu o rei - não teria dúvida em atendê-lo. Quem me garantirá, porém, o teu regresso? Como poderei confiar em tua palavra, ou melhor, no juramento de um contrabandista! Uma vez em liberdade deixarás, certamente, o país e nunca mais aqui tornarás...
Respondeu o condenado com veemência
- Deixarei, como penhor, um amigo em meu lugar.
- Aceito a proposta - concordou o rei. - Imponho, porém, uma condição: o teu amigo será enforcado se, findo o prazo concedido, não tiveres ainda regressado.
A notícia do caso espalhou-se pela cidade. No dia seguinte apresentou-se diante do rei um homem chamado Zeidun, que se oferecia para ficar no lugar de seu amigo Monir Salomão.
Disse-lhe com serenidade e firmeza o monarca:
- Previno-te de uma coisa: se findo o prazo de um ano o teu amigo não houver ainda regressado serás enforcado como contrabandista. Aceitas?
- Aceito! - declarou Zeidun.
Passaram-se os doze meses e Monir Salomão, o condenado, não regressou.
Determinou pois o rei fossem feitos os preparativos para a execução do amigo que se oferecera para ficar como refém. Na praça principal da cidade foi erguida uma grande forca e Zeidun compreendeu que poucas horas lhe restavam de vida.Muitas pessoas, com negras invectivas, censuraram o procedimento do indigno Monir que fora tão desleal ao abandonar o amigo dedicado.De repente, porém, a cidade foi abalada por uma notícia sensacional. Monir Salomão acabara de chegar. Surgia com o albornoz em frangalhos, coberto de terra; uma violenta tempestade de areia retardara por dois dias a sua viagem e o obrigara a atravessar a pé uma grande parte do deserto. Assombrou-se o rei ao saber que o condenado, fiel à palavra dada, havia regressado, com o maior sacrifício, para salvar o amigo. Ordenou o monarca que os dois árabes fossem conduzidos à sua presença. Queria, apenas, interrogá-los. Dirigiu-se pois ao fiel Zeidun e disse-lhe com mansidão e num tom de simpatia:
- Admiro-te meu caro Zeidun. És realmente de grande coragem. Ficaste no lugar de um companheiro condenado à morte. Esse amigo, levado pelo instinto de conservação, poderia fugir, desaparecer e tu, fiador da palavra empenhada, estarias irremediavelmente perdido. Dize-me: Por que ficaste?
Respondeu Zeidun com voz serena e grave:
- Fiquei, ó Emir, para provar que no coração do árabe ainda existe a Confiança!
Voltou-se o Rei para o infeliz condenado e interpelou-o bondoso:
- E tu, meu caro Monir? O teu proceder deixou-me deslumbrado! Estavas livre, inteiramente livre. Teus filhos e tua esposa prendem-te, decerto, à vida. Podias fugir para outro país, desaparecer e abandonar nas mãos do carrasco o amigo que temerariamente ficou em teu lugar. Dize-me, por que voltaste?
Monir Salomão, sem hesitar, respondeu placidamente:
- Aqui estou, ó Rei do Tempo! - para provar que no coração dos árabes ainda existe a Lealdade!
Ao ouvir tais palavras o Rei Chariar não se conteve. Ergueu-se de seu trono e num tom solene e arrastado disse:
- Diante do que acabo de ouvir declaro que Monir Salomão está perdoado e determino seja concedido a seu dedicado amigo Zeidun um prêmio de mil dinares!
Os nobres Xeques e vizires que enchiam o grande divã real encheram-se de assombro ao ouvir aquela inesperada sentença do poderoso Chariar.
O primeiro vizir não se conteve. Dirigiu-se respeitoso ao monarca e depois de inclinar-se numa breve mesura, assim falou:
- A nossa curiosidade, ó Rei!, não tem limites! A vossa derradeira sentença, confesso, surpreendeu-nos. Pedimos perdão pela nossa ousadia, mas gostaríamos de conhecer o motivo que o levou a perdoar Monir e a recompensar Zeidun!
O bom monarca quedou-se mudo como se o repentino da pergunta o tivesse atordoado. Depois de breve reflexão, assim falou
- Esses homens procederam, no caso, com lealdade e nobreza. Absolvi, por isso, o primeiro e recompensei o segundo. O meu perdão tinha por fim provar que no coração dos árabes ainda existe a Bondade...
- E a recompensa?
- Com essa oportuna e merecida recompensa - concluiu o monarca – provei apenas que no coração dos árabes ainda existem a Generosidade e a Justiça.
Uassalã!
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