terça-feira, 4 de outubro de 2011

O Livro do Destino

Certa vez - há muitos anos - quando de volta de Bagdá, aonde eu fora vender uma grande partida de peles e tapetes, encontrei num caravançará (1) perto de Damasco velho árabe de Hedjaz que me chamou de certo modo a atenção. Falava agitado com os mercadores e peregrinos, gesticulando e praguejando sem cessar.  Fumava constantemente uma mistura forte de fumo e haxixe e quando ouvia de um dos companheiros uma censura qualquer, exclamava, apertando entre as mãos o turbante esfarrapado:
- Mac Allah! (2), ó muçulmanos! Eu já fui poderoso! Eu já tive o Destino nesta mão!
- É um pobre diabo - diziam. - Não regula bem do miolo! Allah que o proteja!
Eu, porém – confesso, - sentia irresistível atração pelo desconhecido do turbante esfarrapado. Procurei aproximar-me dele discretamente, falei-lhe várias vezes com brandura e ao fim de algumas horas já lhe havia captado inteiramente a confiança.
- Os homens da caravana me tomam por doido - ele me disse uma noite quando cavaqueamos a sós. - Não querem acreditar que já tive nas mãos o destino da humanidade inteira. Sim, senhor: o destino do gênero humano!
Esbugalhei os olhos assombrado.
Aquela afirmação insistente de que havia sido senhor do Destino era característica do seu pobre estado de demência.
O desconhecido, porém, que parecia não perceber os meus sustos e desconfianças, continuou:
- Segundo ensina o Alcorão - o livro de Allah - a vida de todos nós está escrita - Maktub! (3) - no grande "Livro do Destino". Cada homem tem lá a sua página com tudo o que de bom ou de mau lhe vai acontecer. Todos os fatos que ocorrem na terra, desde o cair de uma folha seca até à morte de um califa, estão escritos - estão fatalmente escritos - no Livro do Destino!
E sem esperar que eu o interrogasse narrou-me o seguinte:
- Em viagem pelo deserto sonhei, certa vez, que havia salvo um velho feiticeiro que ia ser enforcado. Esse feiticeiro, em sinal de gratidão, deu-me um talismã raríssimo que possuía. E essa pedra maravilhosa permitia a entrada livre na famosa Gruta da Fatalidade, onde se acha - pela vontade de Allah - o Livro do Destino. Viajei dois anos a fim de chegar à gruta encantada. Um djim (4) - gênio bondoso que estava de sentinela à porta - deixou-me entrar, avisando-me, porém, de que só poderia permanecer na gruta por espaço de poucos minutos. Era minha intenção alterar o que estava escrito na página da minha vida e fazer de mim um homem rico e feliz. Bastava acrescentar com a pena que eu já levava: "Terá muito dinheiro!". Lembrei-me, porém, dos meus inimigos. Poderia naquele momento fazer grande mal a todos eles.
Movido pela idéia única do ódio e da vingança, abri a página de Ali Ben-Homed, o mercador. Li o que ia acontecer a esse meu rival! E acrescentei em baixo, sem hesitar, cheio de rancor: - "Morrerá pobre, sofrendo os maiores tormentos!" - Na página de Zalfah-el-Abari escrevi, impiedoso, alterando-lhe a vida inteira: "Perderá todos os haveres. Ficará cego e morrerá de fome e sede no deserto!" - E assim, sem piedade, arrasei, feri, retalhei a todos os meus desafetos!
- E na tua vida? – indaguei, curioso - Que fizeste, ó muçulmano, na página em que estava escrita a tua própria existência?
- Ah, meu amigo! - prosseguiu o desconhecido cheio de mágoa. - Nada fiz em meu favor. Preocupado em fazer o mal aos outros, esqueci-me de fazer o bem a mim mesmo. Agi como um miserável! Semeei largamente o infortúnio e a dor e não colhi a menor parcela de felicidade. Quando me lembrei de mim, quando pensei em tornar feliz a minha vida, estava terminado o meu tempo. Sem que eu esperasse surgiu-me pela frente um efrite - gênio feroz, que me agarrou fortemente e, depois de arrancar-me das mãos o talismã, me atirou fora da gruta. Caí entre as pedras e com a violência do choque perdi os sentidos. Quando recuperei a razão achei-me ferido e faminto, muito longe da gruta, junto a pequeno oásis do deserto de Omã. Sem o talismã precioso nunca mais pude descobrir o tortuoso caminho da Gruta do Destino.
E concluiu, entre suspiros, numa atitude de profundo e irremediável desalento:
- Perdi a única oportunidade que tive de ser rico e feliz!
Seria verdadeira essa estranha aventura?
Até hoje ignoro. O certo é que o triste caso do velho árabe de Hedjaz encerrava grande e precioso ensinamento. Quantos homens há no mundo que, preocupados em levar o mal a seus semelhantes, se esquecem do bem que poderiam fazer a si próprios...
*
(1) Caravançará - Refúgio construído pelo governo ou por pessoas piedosas à beira do caminho para servir de abrigo aos peregrinos. Espécie de "rancho" de grandes dimensões em que se acolhiam as caravanas.
 
(2) Mac Allah - Exclamação usual entre os árabes. "Por Deus" ou ainda: "Exaltado seja Allah!".
 
(3) Maktub! (estava escrito!) - Particípio passado do verbo catab (escrever). Expressão que bem traduz o fatalismo muçulmano.
 
(4) Djins e efrites são gênios sobrenaturais cuja existência os árabes admitiam. Essa crendice só subsiste nas classes incultas. Os djins são benfazejos ao passo que os efrites se divertem com o mal que podem fazer às criaturas.

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