quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Intérprete das Corujas

  Damasco, na Síria, meu jovem amigo. Se algum dia visitares a famosa cidade poderás admirar - para além do velho Bazar uma bela e rica mesquita que os árabes denominaram Umauê, ou melhor, "Dejami el-Umauê".
Vem comigo. Tiremos nossos sapatos, coloquemos nos pés estas confortáveis babuchas amarelas e entremos na mesquita pela porta principal.
Repara. Nesta imensa parede tão batida pela luz, destacam-se várias inscrições em caracteres árabes. Uma dessas legendas recorda o nome de um certo rei ou emir chamado Man Atil Zaidan.
Quem foi, afinal, esse monarca cujo nome figura em arabescos no templo de Damasco? Teria ele praticado alguma proeza? Será citado, como herói, em alguma história ou lenda do Oriente?
- Acertou, meu amigo. Esse rei, de nome tão sonoro, aparece envolvido na trama de uma história singular que vou contar.
Logo que subiu ao ambicionado trono da Síria - ao contrário de seus antecessores - mostrou-se o rei Man Atil Zaidan violento, perverso e ambicioso. Preocupado em obter dinheiro para a sua corte aparatosa e inútil, e satisfazer os caprichos mais vergonhosos, não hesitou esse indigno monarca em sobrecarregar as cidades de impostos pesadíssimos. Os comerciantes arruinavam-se; os pequenos fabricantes abandonaram as suas indústrias. Por todos os recantos surgia a miséria com o seu lamentável cortejo de calamidades.
E tudo isso porquê?
Por causa de um rei insensato e egoísta que não zelava pela felicidade de seu povo e vivia indiferente à prosperidade de seu país.
Ora, o Emir Zaidan tinha um vizir, ou melhor, um ministro, chamado Obaid Hazen, que se distinguia por ser homem bom e piedoso.
Seriamente preocupado com a situação de penúria a que havia chegado o povo sírio, resolveu o vizir Hazen intervir junto ao poderoso Emir a fim de por termo àquela situação angustiosa.
Que fazer? Dar conselhos ao rei?
Seria uma imprudência, uma loucura. Qualquer advertência ou a menor ponderação provocaria uma irritação terrível no espírito do exaltado soberana e novas calamidades iriam cair sobre o povo.
Vejamos o modo inteligente e original como agiu o bondoso vizir.
Uma noite, sem que ninguém percebesse, foi ao grande jardim do palácio e enterrou no chão - exatamente debaixo do banco onde o rei costumava sentar-se - uma caixa cheia de sedutoras moedas de ouro.
Passaram-se vários dias.
Certa tarde, depois de uma aventurosa e fatigante caçada, resolveu o Emir Zaidan repousar à sombra das belas árvores que adornavam os jardins de seu palácio.
Sentou-se o monarca precisamente no pequeno banco de sua predileção. A pequena distância, em outro banco, achava-se o vizir Hazen.
O dia caía calmo e lentamente. Leve brisa agitava as folhas amareladas que jaziam entre os seixos claros que forravam as alamedas.
De repente dois pássaros vieram pousar no galho de uma árvore próxima e puseram-se a cantar alegremente.
Mostrou-se o vizir, desde logo, estranhamente preocupado com os pássaros. Acompanhava, com a maior atenção, todos os movimentos das aves. Em dado momento pôs-se a rir; logo depois ficou muito sério e com trejeitos do rosto denotava imensa contrariedade.
Achou o rei profundamente esquisita a atitude de seu vizir e interrogou-o com um tom de desconfiança:
- Por Allah, ó vizir! Que estás notando de singular naqueles pássaros?
Assumindo atitude de quem se sente constrangido por se ver pilhado em falta grave, respondeu o vizir:
- Senhor! Vejo-me forçado a confessar um segredo que durante vinte anos, com o maior empenho, ocultei aos meus amigos mais íntimos.
- Que segredo é esse? - interpelou, com energia, o soberano árabe.
- Aprendi, ó Rei, com um sábio hindu a complicada linguagem das aves e todas as expressões que elas usam quando se comunicam entre si. Posso servir de intérprete aos corvos, gansos e corujas. Os pássaros com os seus gorjeios falam, ou melhor, conversam com os outros e as frases que eles articulam eu as entendo muito bem.
Surpreendido com aquela extraordinária revelação, procurou logo o rei certificar-se da verdade. E perguntou ao seu digno ministro.
- E que estavam aqueles pássaros falando há pouco?
Tornou o vizir:
- Aquele passarinho cinzento-escuro que se acha agora no extremo do galho narrava ao outro uma interessante peraltice praticada nas margens de um lago por um dos seus filhos. E eu achei graça!
- E que teria dito o outro? - insistiu ainda o monarca sem saber disfarçar a curiosidade que o espicaçava.
- O outro respondeu, ou melhor, gorjeou: "Ali está o nosso rei, tranqüilo, sentado naquele banco e mal poderá imaginar que no chão, exatamente naquele lugar, se encontra enterrado um valioso tesouro!".
Depois de urna ligeira pausa o vizir prosseguiu muito sério.
- Ora, isso é mentira - pensei. - Como pode um pássaro, voando pelas alturas, descobrir tesouros enterrados na terra? Fiquei contrariado ao perceber que o pássaro pretendia divertir-se à nossa custa!
- Ele falou em tesouro! - exclamou com alvoroço o rei. - É espantoso! É preciso que nos certifiquemos de tudo, verificando se disse ou não a verdade.
Levantou-se imediatamente o monarca. E num tom imperativo de confiança mandou retirar o banco e determinou que os servos fizessem ali mesmo uma escavação. Dois ou três palmos abaixo do solo foi realmente encontrado um pequeno cofre com mais de cem moedas de ouro. Era a caixa que o vizir astuciosamente havia colocado, dias antes, para iludir o soberano.
Exultou o rei com o precioso achado.
O tesouro, não havia a menor dúvida, fora revelado pelo pássaro. Era certo pois que o vizir compreendia a linguagem da passarada inquieta.
Desse dia em diante o rei, convencido de que o vizir Hazen era um tradutor exímio de pios e gorjeios, não dispensou mais a sua companhia. Levava-o às caçadas, festas e passeios. E sempre que surgiam pássaros estranhos o ministro era intimado logo a traduzir todas as expressões canoras, pois o insaciável monarca esperava que outra vez viesse do céu a revelar a existência de novos tesouros perdidos no seio da terra.
O inteligente vizir - aproveitando-se da credulidade do rei - adquiriu um prestígio extraordinário.
Vários casos ocorridos posteriormente vieram, aliás, confirmar o dom maravilhoso do singular intérprete.
Um dia, por exemplo, durante uma jornada pelo deserto, o rei perdeu o seu rico punhal; o vizir Hazen, que vira a arma tombar, não disse nada ao monarca. Mas no dia seguinte - fingindo traduzir a frase de uma andorinha - indicou precisamente o lugar em que se achava o punhal perdido.
E assim, de dia para dia, o vizir reafirmava diante do rei as suas habilidades como tradutor de pássaros.
Vejamos agora o desfecho do caso.
Regressava certa vez, ao cair da tarde, o rei, de uma excursão. Acompanhava-o como sempre o sábio vizir Hazen. Ao passar junto a um muro em ruínas o senhor da Síria avistou duas corujas.
Voltou-se o crédulo soberano para o seu ministro e disse-lhe muito sério:
- Gostaria de saber, ó Vizir, o que estão aquelas astuciosas corujas conversando.
Obediente à ordem que acabava de receber parou o vizir e pôs-se em atitude de quem procurava ouvir atentamente uma palestra.
Súbito, porém, mostrou-se tomado de um indizível rancor. Saltou bruscamente do cavalo e apanhando uma pedra da estrada arremessou-a violentamente contra uma das corujas, bradando enfurecido:
- Miserável! Caluniadora! Que Allah castigue essa infâmia!
- Que é isso? - estranhou o rei. - Que disse a coruja?
Desculpou-se humildemente o vizir. As expressões proferidas pela coruja eram indignas de serem ouvidas.
O monarca, porém, insistiu:
- Exijo, ó Vizir, que me digas a verdade, seja ela qual for!
Ao ouvir a ordem enérgica do rei o vizir, com falso constrangimento, narrou o seguinte:
- A princípio as corujas falaram banalidades. De repente, porém, uma delas reclamou da outra: - "Você prometeu à minha filha, como dote, sete cidades arruinadas! E onde estão essas cidades? Vejo muitas casas e castelos arruinados; mas cidades, reduzidas a ruínas e escombros, ainda não avistei nenhuma!". Respondeu a outra que parecia mais velha: "Tenha paciência, minha boa amiga. Dentro de poucos meses você terá não sete, mas setenta cidades arruinadas! Todo mundo, sabe disto". "E sabe por quê?" indagou a coruja mais moça. - "Ora" - acudiu a velhota, com ironia – "basta observar a forma inepta e criminosa como o rei Zaidan está governando a Síria. Esse emir é tão mau e tão perdulário que dentro em poucos meses reduzirá este belo país a um montão de ruínas".
- Ao ouvir tal injúria - prosseguiu o ministro - não me contive. Tomei de uma pedra e procurei logo castigar a coruja atrevida que proferia tão graves e injustas acusações contra o nosso bondoso soberano.
O rei Zaidan ouviu em silêncio a narrativa do vizir. As graves queixas que o astucioso vizir atribuía à velha coruja - calaram profundamente em seu espírito. A ele, unicamente a ele, cabia a grave culpa de levar o país à ruína. Resolveu, pois, modificar a sua forma de administrar as coisas do reino. Reformou o seu ministério, escolheu bons secretários e orientado por judiciosos conselheiros aboliu os gastos inúteis suprimiu os impostos extorsivos, ergueu novas escolas e construiu asilos para os pobres e hospitais para os enfermos.
O país foi conduzido, assim, para um largo período de paz e prosperidade.
E a interessante legenda que um hábil calígrafo traçou na mesquita de Umauê refere-se como já disse, ao nome desse rei Zaidan, que até hoje é lembrado com saudade pelos crentes e infiéis.
E o nome do dedicado e inteligente vizir Hazen? - Não existe também uma legenda, com moldura de ouro, para recordá-lo?
- É inútil qualquer legenda, meu amigo. O nome do judicioso vizir Hazen, que soube levar o rei Zaidan ao bom caminho, está para sempre escrito com letras luminosas no céu deslumbrante da Síria.
 
Uassalã!

Nenhum comentário:

Postar um comentário