terça-feira, 4 de outubro de 2011

Os Mais Generoso dos Xeques

Os homens paravam respeitosos para saudá-lo, quando o xeque Rayekh atravessava as ruas sombrias e tortuosas de Marraquexe:
- Salã! Salã ao mais generoso dos xeques!
- Allah badique ia sidi! (Deus vos conduza, ó chefe!).
- Iuladi velodé il - ej-jinna! (Seja o Paraíso a morada de vossos pais!)
Ao ouvir aquelas expressões tão eloqüentes que traduziam o sentimento de gratidão que vivia na alma do povo, uma dúvida, por vezes, insinuava-se em meu espírito: Sidi Elmadim seria, realmente, merecedor daquelas homenagens? Não haveria exagero em sublinhar-se o seu nome com as tintas que as sinalam os diletos de Allah?
Um dia, afinal, o Destino levou-me a assistir a uma cena que me abalou profundamente.
- Vou contá-la, ó irmão dos árabes!, e julgarás o caso segundo os ditames de teu coração.
Achava-me, certa vez, pouco antes da terceira prece, no pátio da mesquita de Iazid, em companhia de Sidi Elmadin e de um perfumista de Casablanca. Conversávamos descuidados sobre um crime ocorrido dias antes em Bab Berrimas, quando vimos aproximar-se de nós um ancião andrajoso e trôpego.
- Uma esmola! - implorou humilde. - Uma esmola pelo amor de Allah!
Sidi Elmadin tirou da bolsa uma rica moeda de ouro e depositou-a nas mãos trêmulas do velho.
Ao receber a preciosa libra o mendicante exclamou:
- Yah abu'l jaz! (Ó pai da excelência!). Seja Allah o vosso guia e amparo, e que a sombra da ventura seja a vossa própria sombra.
Ninguém poderá avaliar o espanto que me invadiu, quando vi o xeque dirigir-se ao mendigo, tirar-lhe a peça de ouro (que momentos antes lhe dera) e, em troca, meter-lhe nas mãos um dinar de prata.
- Espera, meu velho - explicou, meio constrangido. Enganei-me ao tirar da bolsa o dinheiro.
- E, apontando para o dinar ajuntou:
- Era esta a moeda que pretendia oferecer-te!
O pedinte, depois de revirar entre os dedos grossos a rutilante moeda (de valor bem menor que a primeira), fez ouvir novamente os seus sentimentos de gratidão:
- Yah abu'l! (Ó pai da bondade!). Que Allah, o misericordioso, abençoe os vossos filhos e os filhos de vossos filhos! Que a alegria viva sempre em vosso lar!
Maior foi ainda a minha surpresa quando vi o rico Elmadin, alegando novo equívoco, aproximar-se outra vez do pobre, arrebatar-lhe das mãos o dinar de prata e dar-lhe em troca uma ouquia, isto é, uma moeda de bronze de ínfimo valor.
- Sinto contrariar-te; ó muçulmano! - disse ao pávido mendigo o rico xeque - mas no momento só posso dispor desta ouquia.
Fosse eu o infeliz mendigo da mesquita (livre-me Allah, o Exaltado, desse triste destino!) não admitiria que um homem rico como Sidi Elmadin tripudiasse daquele modo, sobre a minha miséria. Pelo manto do Profeta! (Com ele a paz e a glória!). Sem hesitar um segundo atiraria a ouquia nas barbas do arrogante xeque e cuspir-lhe-ia por cima o meu desprezo infinito.
Bem diverso foi, entretanto, o proceder do mendigo. Sem demonstrar o mais leve ressentimento ou contrariedade, como se o seu coração já estivesse impermeável a todas as afrontas e indignidades da Vida, ajoelhou-se aos pés do xeque e assim falou:
- Yab abu'l Kamau! (Ó pai da perfeição!). Que a generosidade de Allah caia para sempre sobre vossos ombros e que as vossas mãos dadivosas possam, por muitos e muitos anos, auxiliar os infelizes. Seja a felicidade a luz de vossos olhos!
Aquelas palavras impressionantes pela sinceridade com que eram ditas, ecoavam torturantes em meu coração. Tive ímpetos de agredir Sidi Elmadin, atirar-lhe dois insultos pesados e afastar-me de sua presença. Contive-me unicamente para não macular com palavras de ódio e rancor as paredes veneráveis da grande mesquita. Notei que o perfumista, os braços cruzados sobre o peito, permanecia risonho, impassível, como se estivesse assistindo ao caso mais trivial do dia.
Sidi Elmadin, pousando a mão no ombro do mendigo, disse-lhe:
- Leva essa ouquia, meu velho, à casa de Bassã, o padeiro, e compra um pão!
No dia seguinte achava-me no suque de El-Quemis palestrando com Fauzi Sarid, o mercador, quando avistei Sidi Elmadin que passava a dez pés de nós.
O mercador, que se achava a meu lado, dirigiu um afetuoso salã ao xeque:
- Yah abu'l nuzzaur! (Ó pai da riqueza!). Queira Allah fazer-te cem vezes mais rico e mil vezes mais feliz!
E, notando que eu ficara silencioso, perguntou-me se por acaso eu não tinha a ventura de conhecer Sidi Elmadin, o mais generoso dos xeques.
- Conheço-o de sobra - respondi com ironia. - Esse ricaço pode iludir a todo mundo menos a mim.
E narrei-lhe o episódio que havia, na véspera, testemunhado em companhia de um perfumista de Casablanca.
Respondeu-me o mercador
- Já soube desse caso que tanto espanto causou ao teu espírito, e a explicação da estranha atitude do xeque é muito simples. Ouvi-a, esta manhã, do perfumista que é amigo íntimo de Sidi Elmadin.
- Não vejo explicação alguma - repliquei, contrariado. - Para mim ninguém tem o direito de humilhar um pobre!
O mercador, procurando esclarecer a verdade, contou-me o seguinte:
- Quando Sidi Elmadin avistou o velho andrajoso, julgando tratar-se de um falso mendigo, quis experimentá-lo. Que fez? Deu-lhe uma moeda de ouro e depois, alegando haver-se enganado, trocou a moeda por outra de prata. Se o mendigo tivesse palavras de revolta, revelando uma alma sórdida e propensa à ingratidão, seria mandado em paz com a libra de ouro e com o dinar de prata.
Tal, entretanto, não sucedeu. Vendo, embora, diminuída a esmola, ele não deixou de manifestar novamente a gratidão que sentia pelo generoso benfeitor. Que fez o xeque? Procurou certificar-se da grandeza da alma do infeliz. Tomou a moeda de prata, que já dera e substituiu-a por uma ouquia de bronze. Se se tratasse de um tipo vulgar, com o espírito caldeado pela inveja e pelo despeito, decerto o bondoso xeque teria sido injuriado por ter feito aquela segunda troca. O pobre, no entanto, revelando possuir sentimentos nobilitantes de paciência e resignação, mostrou-se conformado com a sorte, não se sentiu ofendido com o desvalor da esmola, nem se irritou com a perda dos dois outros valores.
- E que ganhou, afinal, o mendigo? - indaguei, arrastado pela curiosidade que o caso em mim despertara.
- Aquela ouquia de bronze - continuou o mercador - estava marcada, e o mendigo levando-a ao velho Bassã foi incluído na relação dos pobres da "Fátima", sociedade mantida pelo xeque Elmadin.  As pessoas socorridas por "Fátima" têm pão e agasalho para o resto de seus dias. Eis aí a recompensa que alcançou o velho da mesquita: o maior auxílio que poderia desejar!
- Bem vês, meu amigo - concluiu o mercador - que Sidi Elmadin é, sem dúvida, um dos homens mais sábios e mais generosos do mundo!
Nesse momento avistei o xeque, de pé junto a uma das portas do suque. Na ânsia de reparar o erro do julgamento que eu tivera a leviandade de proferir contra ele, ergui o braço e exclamei bem alto:
- Allah badique ia sidi! (Deus vos conduza, ó Chefe!).

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