"Cordas do inferno me cingiram, laços de morte me surpreenderam. Na angústia, invoquei ao SENHOR e clamei ao meu Deus; desde o seu templo ouviu a minha voz e aos seus ouvidos chegou o meu clamor perante a sua face". David (Salmo 18:5-6).
Era por um dia de sábado, ao anoitecer. Havia já algumas horas que o doutor Meir se entretinha na escola pública explicando a Santa Lei a seus inúmeros discípulos. Deleitavam-no aqueles estudos e a religiosa atenção com que suas palavras eram ouvidas.
Sua casa, entretanto, durante aquelas fugidias horas, hospedara o luto e a desesperação. Dois de seus filhos haviam morrido quase de repente e de sua família só a desolada mãe permanecia para chorar aos pés dos dois cadáveres. Infeliz mulher! Petrificada pela dor, contemplava imóvel aqueles dois corpos amados buscando neles, em vão, alguns indícios de vida; e vinha-lhe à mente o pobre marido que dentro em pouco iria defrontar o tremendo espetáculo. O respeito à vontade divina e a caridade de esposa deram à mísera uma grande força de alma. As maternas mãos estenderam um lençol sobre aquele leito de morte onde os filhos amados repousavam. Cumprindo o piedoso mister, a triste mãe passou-se ao quarto vizinho à espera do marido.
A noite descera lentamente. Já estrelas sem conta luziluziam pelas alturas sem fim. Volveu a casa o doutor e apenas transposta a soleira indagou, da sua esposa, um tanto perturbado:
- E os filhos?
- Terão ido à escola - respondeu a mulher com voz trêmula e sumida, fitando o céu, evitando o olhar do marido.
- Parece-me que não os vi entre os alunos.
A mulher, sem lhe responder, apresentava-lhe o vinho e o círio para o Avdalá, com que implorar as bênçãos do céu para a nova semana.
Cumpriu o doutor o religioso ato e com crescente ânsia bradou:
- Mas, e os filhos, mulher?
- Saíram talvez para alguma incumbência familiar.
Isto dizendo punha diante do marido, há longo tempo em jejum, umas fatias de pão.
Provou o doutor um pedacinho e tendo dado graças a Deus, a quem devemos todos os bens terrenos, exclamou:
- Como tardam hoje os nossos filhos! É certo que não sabes mesmo nada, ó esposa minha? Porque me pareces tão triste?
- Eu, meu esposo, preciso muito de um conselho teu.
- Que é?
- Ontem um amigo nosso me procurou e deixou sob minha guarda algumas jóias. Vem ele agora reclamá-las. Ai de mim! Não contava que viesse tão cedo. Devo restituí-las?
- Ó minha esposa! Essa dúvida é pecaminosa!
- Mas já me afizera tanto àquelas jóias!
- Não te pertenciam.
- Mas eu queria-lhes tanto bem... Talvez tu também...
- Ó mulher! - exclamou atônito o marido que começava a pensar, com temor, nalguma coisa, estranha e terrível. - Que dúvidas! Que pensamentos! Sonegar um depósito, coisa sagrada!
- É isso mesmo - balbuciava chorosa a mulher. - Muito preciso de teu auxílio para fazer esta dolorosa restituição. Vem ver as jóias depositadas.
E as suas mãos geladas tomaram das mãos do atônito marido e conduziram-no a câmara nupcial e ergueram as franjas do lençol fúnebre.
- Aqui estão as jóias. Reclamou-as Deus!
Diante daquela visão o pobre pai prorrompeu em grandíssimo pranto, e exclamou golpeado pela dor:
- Ó filhos meus, filhos de minha alma, doçura da minha vida, luz dos meus olhos, ó meus filhos!
- Esposo meu. Não disseste há pouco que é forçoso restituir o depósito quando o reclama o seu dono legítimo?
Com os olhos marejados de lágrimas, o sábio fitou a esposa cheio de admiração e de inefável ternura.
- Ó meu Deus – suspirou, - posso eu balbuciar alguma queixa contra a Tua vontade? Deste-me, para escudo e consolo de minha vida uma esposa religiosa e santa!
E os dois infelizes prostraram-se a um só tempo e por entre lágrimas repetiram as santas palavras de Jó:
- "Deus deu, Deus tirou. Bendito seja o seu santo nome!".
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