quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Rabi e o Carpinteiro

Rabi Jeshua bem Ilem, homem sábio, justo e piedoso, sonhou, certa vez, que fora levado para o céu. Ao entrar no Paraíso, entre anjos de asas luminosas, veio ao seu encontro o Profeta Elias:
- Salve, meu bom Rabi! - exclamou Elias com acolhedora alegria, abrindo os braços. - Salve! Até que enfim vais receber o prêmio que mereces.
E, apontando para larga e deslumbrante poltrona que surgia livre, ajuntou num sorriso que o envolvia todo em claridade e doçura:
- Ali está o teu lugar! Aqui ficarás entre os eleitos do Senhor.
Rabi Joshua, muito constrangido e perturbado, impelido, porém, pelo seu espírito de obediência e docilidade, sentou-se maravilhado na poltrona indicada. Um anjo, claro e delicado como um lírio, tendo nas mãos longa espada cintilante, adiantou-se entre os querubins e proclamou numa voz suave que parecia um hino de glória e de amor:
- Ó bem-aventurados! Eu vos saúdo, ó eleitos do Senhor! Vereis agora, entre as luzes que cortam as trevas, a face excelsa do Eterno!
Fez-se profundo silêncio. Os anjos pareciam imóveis e como que suspensos entre nuvens coloridas. Naquele momento crucial, o rabi Joshua olhou para a direita, num inquieto reparo de curiosidade, e viu, com assombro, que a seu lado, no Paraíso, numa poltrona talvez mais rica e mais brilhante do que aquela que lhe fora destinada, estava sentado, e bem sentado, Simão Anas, homem rude e iletrado, que exercia a modesta profissão de carpinteiro.
Pensamentos importunos inspirados por detestável amor-próprio apoderaram-se do bom rabi.
Coisa singularmente estranha! O seu vizinho no Paraíso era um modesto carpinteiro, tipo semi-analfabeto, que não aparecia nas festas da Sinagoga, que não comentava a Torá, que desconhecia, certamente, os ensinamentos mais elementares dos doutores de Israel.
No dia seguinte, ao despertar, intrigado com o sonho que o deslumbrara, o rabi refletiu:
- Os sonhos têm sempre um quê de verdade. É certo, portanto, que o meu vizinho no Paraíso será Simão Anas, o carpinteiro. Mas, afinal, quem sou eu? Um sábio - dizem todos - sim, um homem que consagrou a vida ao estudo e à meditação. Já tenho educado várias gerações; milhares de pessoas têm ouvido e guardado os meus ensinamentos. Dezenas de dúvidas, em que se debateram os mestres, foram por mim elucidadas. Longa e incansável tem sido a campanha por mim desenvolvida contra os idólatras e contra os ateus. As minhas obras e os meus sermões fazem renascer a Fé e a Bondade nos corações mais rebeldes. Pratico a caridade; procuro implantar a paz e a concórdia entre os homens; sirvo a todos indistintamente; obedeço aos santos mandamentos; procuro viver no caminho da virtude, com modéstia e simplicidade. E depois de toda essa lida, ao termo de uma vida de sacrifícios e de estudos, sou equiparado a um carpinteiro, boçal e grosseiro.
Depois de meditar sobre o caso, impelido por uma turbulência de idéias desencontradas, resolveu o rabi apurar a verdade. Cumpria-lhe indagar como vivia aquele carpinteiro que se fizera merecedor de tão alta distinção entre os eleitos do Senhor.
Dirigiu-se o sábio para a modesta e atravancada oficina de Simão Anas e encontrou o ativo carpinteiro, na faina habitual, branqueado de pó, a carpintejar.
- Dize-me, meu bom amigo - começou o rabi meio hesitante e já sentado numa banqueta rústica - dize-me, por favor, quais são as obras de caridade por ti praticadas? Em que dia costumas freqüentar a Sinagoga? Quais são as horas por ti consagradas ao estudo da Torá e dos Livros Sagrados?
- Lamento muito confessar - respondeu o carpinteiro em tom respeitoso - que não leio coisa alguma; jamais estudei a Torá; desconheço por completo os Livros Sagrados. Gostaria muito de estudar, de ouvir os doutores, de rezar na Sinagoga, mas não tenho tempo. Falta-me o tempo, rabi!
- Falta de tempo? - estranhou o rabi. - Como assim?
Respondeu o carpinteiro:
- Tenho muito trabalho nesta oficina. Não dou conta das encomendas que recebo diariamente. Passo muitas horas a carpintejar. Aproveito as minhas folgas, os meus momentos livres, para cuidar de meus pais.
- De teus pais?
- Sim - confirmou o carpinteiro. - Meu Pai e minha Mãe, já bem velhinhos, moram comigo. Precisam de meu amparo e de minha assistência. Dou-lhes de comer, de beber e cuido deles sempre que posso. A eles consagro todos os minutos livres da minha vida. Levo-os, de quando em vez, a passear pelo jardim. Ao cair da tarde, faço, às vezes, um pouco de música para distraí-los. Minha Mãe sorri para mim e diz: "Querido!". Meu Pai sorri, também, e diz: "Meu filho!". Eles são bem velhinhos e precisam tanto de mim! Perdão, senhor rabi! Eu não tenho tempo nem para rezar na Sinagoga!
O rabi Joshua bem Ilem, o sábio, ergueu-se muito sério e, numa voz emocionada, assim falou:
- Que importa isso, meu amigo, que importa? Afirmo, ó carpinteiro!, afirmo pela glória de Moisés, que se algum dia, amparado pela misericórdia divina, tiver o meu nome incluído entre os eleitos do Senhor, terei muita honra de me sentar ao teu lado no Paraíso!
Simão Anas, o carpinteiro, não compreendeu esse estranho discurso do ilustre visitante. Não compreendeu e nem poderia compreender. Enquanto o douto israelita falava estava ele esquecido, pensando em seus pais. Os velhinhos teriam tanto prazer se pudessem conversar um pouco com aquele bom e eloqüente rabi, que todos admiravam e respeitavam como um santo...

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