A lenda singular que envolve a vida gloriosa do rei Hiamir, senhor do Iêmen, deve ser contada cem mil vezes para que os homens de sentimento possam dela colher as tâmaras mais doces da Beleza e da Verdade.
Se Allah permitir, poderei repeti-la mais uma vez:
Conta-se que o rei Hiamir chamou, certa vez, o seu digno ministro Idálio e disse-lhe:
- Quero fazer, ó vizir, uma longa e demorada excursão a uma das regiões mais longínquas do meu reino. Formei o desejo de visitar e percorrer o país de Tiapur, na fronteira
Estou informado, porém, de que essa província, sobre ser pobre e triste, é árida e sem conforto. Daqui partirás, pois, alguns meses antes de mim, levando os recursos que forem necessários. Logo que chegares a Tiapur mandarás sem demora construir um magnífico palácio, com largas varandas de marfim e pátios floridos. Nesse palácio ficarei hospedado, durante uma temporada, com tranqüilidade e conforto.
Respondeu o vizir, beijando a terra entre as mãos:
- Escuto e obedeço, ó Rei! A vossa ordem estará sempre diante de meus olhos e de meu coração.
Cinco dias depois uma poderosa caravana, sob a chefia do grão-vizir, partia da capital em demanda dos oásis verdejantes de Tiapur. Os numerosos camelos carregados de ouro e ricas alfaias, deixavam sulcos bem fundos na areia branca do deserto. A fila era tão extensa que a caravana, ao parar, sob a inclemência do sol, parecia um arabesco escuro traçado no areal sem fim.
- Que vai fazer, tão longe, o vizir? - indagavam os beduínos. - Por Allah! Com que fim conduz ele tantas riquezas?
O chamir - guia da caravana - procurava saciar aquela série de curiosidades, derramando uma torrente de indiscrições:
- O vizir vai construir em Tiapur um palácio maravilhoso para o rei! O palácio terá varandas de marfim e pátios cheios de flores! Uassalã!
A imensa caravana conduzia, realmente, entre os seus viajantes, o talentoso Benadin, o arquiteto de mais prestígio daquele tempo.
Ao chegar, porém, ao país de Tiapur o vizir Idálio ficou desolado com o estado de pobreza e de abandono em que se achava a população. Encontrou, pelas estradas, crianças famélicas, nuas, que mendigavam tâmaras secas: em casebres de palha, centenas de infelizes, abatidos pelas febres, morriam de inanição; mulheres cobertas de andrajos, com os filhinhos nos braços, deixavam-se ficar esquálidas, no pátio da velha mesquita, aguardando os pedaços de pão que eram ali atirados por beduínos supersticiosos.
Os quadros de miséria e sofrimento que se desenrolavam a cada passo e a todo instante torturavam o coração do poderoso ministro. E ele trouxera por ordem do rei mais de trinta mil dinares que seriam gastos na construção de um grandioso palácio!
Que fez o vizir do rei? Levado por um impulso irresistível de bondade, ao invés de executar a ordem do poderoso soberano deliberou gastar o dinheiro que trazia, beneficiando a infeliz população do Tiapur. Mandou, pois, construir abrigos para os desamparados. Distribuiu víveres entre os mais necessitados. Determinou que todos os enfermos fossem sem demora medicados. Forneceu vestes aos que estavam nus e pão em abundância aos que padeciam fome. Por sua ordem foi construído um grande asilo para os órfãos. Mandou ainda reformar a mesquita, que se achava quase em ruínas, e ao lado do velho templo fez erguer um magnífico hospital, onde recolheu os cegos e aleijados.
Ao fim de alguns meses notava-se uma transformação completa da cidade. Os homens haviam voltado cheios de entusiasmo ao trabalho e por toda parte reinava a alegria. As crianças brincavam nos pátios e as mulheres cantavam nas portas das tendas.
E do palácio maravilhoso que o rei encomendara, nada existia...
Um dia, afinal, como já estava combinado, o rei Hiamir, acompanhado de grande escolta, deixou a bela cidade em que vivia para jornadear pelas terras fronteiriças de seu reino.
O vizir Idálio foi ao encontro do soberano e aguardou a chegada da régia caravana no oásis de Cobo, que fica a três horas de jornada de Tiapur.
- Estou ansioso, ó vizir! - exclamou o rei - por admirar o belo monumento que aqui vieste construir. A fadiga da longa viagem convida-me ao repouso, mas só saberia descansar na varanda de marfim de meu belo palácio!
Quando o rei Hiamir chegou a Tiapur, foi recebido por uma indescritível manifestação de júbilo da população.
- Sinto-me feliz - confessou o monarca ao seu primeiro-ministro - por saber que sou sinceramente estimado pelos meus dedicados súditos. A satisfação com que todos aqui me recebem é um indizível conforto para o meu espírito.
E, muito intrigado, perguntou:
- Mas onde está, ó vizir, o palácio de Tiapur?
- Rei poderoso! - respondeu o vizir Idálio. - Antes de vos falar do palácio que aqui vim erguer segundo vossa determinação expressa, tenho um pedido muito sério a fazer-vos. Segundo as vossas leis aquele que desobedecer ao rei, praticando conscientemente um abuso de confiança, deve ser condenado à morte. Houve, ó rei, um homem de vossa confiança que praticou o grave delito da desobediência. Espera que determineis sem demora a execução do culpado.
- Quem e o acusado? - indagou o monarca. - Como se chama? Não é curial que exijas de mim sentença de morte contra um réu que desconheço!
0 criminoso sou eu, ó rei! - respondeu o vizir.
E, sem ocultar aos olhos do soberano a menor parcela da verdade, descreveu em poucas palavras o estado deplorável em que encontrara o povo daquela terra. Falou do abandono em que se achavam os enfermos, das criancinhas famintas que mendigavam, e da miséria inarrável que torturava as pobres mães. E confessou afinal que ele, penalizado diante de tanto sofrimento, ao invés de construir o palácio real resolvera despender todos os recursos da caravana real em socorrer e mitigar a triste sorte da população.
E, ajoelhando-se aos pés do monarca, exclamou o bom vizir:
- Não cumpri, ó Rei!, como acabei de confessar, a ordem que me destes, Desobedeci ao meu amo e senhor! E aguardo humilde o castigo de que me fiz merecedor. Que seja contra mim lavrada a sentença de morte!
- Levanta-te! Dá-me a tua mão, meu amigo - ordenou emocionado o rei. - Não poderá pesar, jamais, sobre a tua consciência a culpa da menor desobediência. O palácio, de cuja construção em boa hora foste por mim encarregado, acha-se construído, com incomparável arte e invejável talento. E posso, deste lugar, abrangê-lo em suas linhas suntuosas, em seu conjunto soberbo, em sua cúpula radiosa e eterna.
E, erguendo o rosto como se fitasse algum monumento fantástico, exclamou cheio de entusiasmo e comoção:
- Que palácio maravilhoso! Como é lindo e deslumbrante! Vejo as torres cintilantes nas fisionomias alegres das crianças que foram por ti socorridas; admiro as largas varandas de marfim no sorriso radiante dos meus súditos; reconheço os pátios enfloridos no olhar de gratidão das mães felizes! Como é majestoso e belo, ó vizir, o palácio que a tua bondade fez erguer nas terras de Tiapur! Allah seja exaltado! Reparai, meu amigo! A verdade não deve ser ofuscada!
Grande fora, sem dúvida, o ministro ldálio, ao praticar com risco de sua vida aquele ato de caridade. Maior porém demonstrara o rei ter sido, ao aprovar imediatamente, com intensa alegria, a generosidade de seu vizir.
O palácio maravilhoso do rei Hiamir tinha os seus alicerces inabaláveis na terra; mas estendia as suas torres deslumbrantes até o céu.
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