ENTRE os gloriosos califas que dominaram o império muçulmano do Ocidente, o mais notável pelos feitos guerreiros e obras artísticas legadas à posteridade foi Abu Iussef Yakub El-Mansol, o famoso vencedor de Alarcos.
Conta-se que um dia, quando El-Mansol em seu palácio de Marraquexe se entretinha como de costume a jogar xadrez com um de seus cortesãos, foi procurado pelo xeque Abd-El-Hassane, que comandava as tropas muçulmanas na campanha impiedosa do soberano contra algumas tribos revoltosas do interior marroquino.
O imperador meditava naquele momento um lance difícil e delicado da partida, em razão do que o xeque de pé, os braços cruzados sobre o peito, em atitude respeitosa, esperou por mais de uma hora que o califa se dignasse dirigir-lhe a palavra.
- Pelas sete almenaras de Meca! - exclamou finalmente El-Mansol. - Até que enfim consegui descobrir uma jogada segura e perfeita, capaz de salvar-me este valoroso peão!
E depois de fazer com uma das suas peças o lance que lhe cabia, voltou-se para Abd-El-Hassane, o chefe das tropas, e perguntou-lhe:
- Dize-me agora, meu bom general, que grave motivo te obrigou a vir assim tão inesperadamente à minha presença?
- Senhor - respondeu Abd-El-Hassane, - achei que devia consultar Vossa Majestade sobre uma questão da máxima importância. Ontem ao cair da tarde os nossos soldados assaltaram de surpresa o acampamento do Sidi Adhamed Rechid, junto ao oásis de El-Khermis. Nessa temerária investida, fizeram mais de cem prisioneiros, por cuja execução imediata opinaram os xeques das tribos nossas aliadas. Não concordei com o sanguinário alvitre. A meu ver, muitos dos prisioneiros são pouco menos que inocentes e não merecem o castigo de morte. Em face da controvérsia, deliberei apelar para o alto e generoso espírito de justiça de Vossa Majestade. Devemos degolar todos os infelizes que caíram em nosso poder?
O rei, sem hesitar, respondeu em tom enérgico:
- Degola-os!
- Escuto Vossa Majestade e obedeço - replicou Abd-El-Hassane. - A ordem será cumprida. Hoje mesmo, antes que o muezim chame os fiéis à oração da tarde, todos os cativos de El-Khermis serão passados a fio de espada!
E o valente soldado, depois de dirigir ao califa a saudação exigida pelas rígidas praxes muçulmanas, voltou-se para o grande tabuleiro de xadrez e inclinou-se várias vezes como se estivesse diante de um trono a saudar um príncipe ou o próprio califa de Bagdá!
O rei, ao atentar naquelas curvaturas descabidas do cheque, exclamou curioso:
- Por Mafoma! Pela santa pedra da Caaba! A quem estás saudando com tanto respeito e cerimônia?
- Senhor! - replicou Abd-El-Hassane com calma e firmeza - estava prestando minhas homenagens ao peão do tabuleiro de Vossa Majestade!
- Onde já viste, ó xeque dos xeques, um muçulmano reverenciar por essa forma um objeto insignificante, sem vida e sem valor?
- Peço humildemente perdão a Vossa Majestade. Não posso, porém, acreditar - contraveio Abd-EI-Hassane - que esse pequenino peão seja, como Vossa Majestade acaba de afirmar, um objeto desvalioso, sem vida e sem interesse. Julgo-o, ao contrário, uma jóia de raro valor, e a ser verdade o que pude observar e concluir deve ter vida, e mais preciosa que a de um príncipe!
E como o rei e nobres presentes o fitassem com mostras de não pequeno espanto, Abd-El-Hassane acrescentou:
- Deparou-se-me ensejo de observar que Vossa Majestade, por temer a perda ou o sacrifício do peão, esteve durante mais de uma hora engolfado em cogitações e cálculos para atinar com o lance certo e preciso; entretanto, Vossa Majestade não hesitou, nem mesmo um segundo, para resolver sobre a condenação à morte de mais de cem criaturas! É evidente, portanto, que o peão precioso do tabuleiro vale muito mais, aos olhos de Vossa Majestade, do que cem vidas humanas!
El-Mansol, o Forte, compreendeu perfeitamente o sentido das palavras de Abd-El-Hassane e ordenou que não fossem mais executados os prisioneiros do oásis de El-Khermis.
E desse dia em diante, no grande império islâmico, nenhum homem foi condenado sem que o decretassem depois de longo e cuidadoso estudo, juízes sábios, íntegros e generosos.
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