Um dia, meditando acerca das dificuldades que o perseguiam, entrou-lhe no coração amarga revolta contra a má fortuna que o fizera mais pobre do que um mísero felá. Espicaçado pelos traiçoeiros pensamentos que lhe entraram no peito, jurou passar um ano inteiro sem agradecer qualquer favor ou benefício que lhe fizessem e ter olhos desdenhosos para a mão bondosa que o acudisse.
Findo o dilatado prazo de tão ingrata promessa, regressava um dia o malfadado Hussein à pobre tenda em que vivia a olhar desconsolado o correr silencioso das águas do Nilo, quando, ao atravessar as ruínas de um antigo cemitério muçulmano, lhe surgiu pela frente uma figura de velho cujo aspecto encheria de pavor mesmo aqueles que estivessem afeitos a encarar de ânimo sereno as mais espantosas aparições. Os olhos afuzilantes e mal contidos nas órbitas eram como os de um felino em fúria; a boca larga, escancarada num ricto de demônio, deixava ver disformes alvéolos desdentados. Negras e grossas orelhas ostentavam brincos grosseiros feitos de ossos de girafas. As mãos peludas de unhas retorcidas lembravam as garras de um chacal assanhado, e os pés disformes e chatos eram como as patas do elefante monstruoso que pisa os juncais africanos.
Ao deparar-se-lhe tão horrenda figura, parou Hussein estarrecido, os cabelos eriçados, a face descomposta, e quis invocar o nome de Allah, o Altíssimo (com Ele a oração dos justos!) para afugentar aquele efrite hediondo, mas a língua se lhe paralisara na boca, e nem um som rouco pôde expelir. Assim se passaram alguns instantes penosíssimos, quando a medonha criatura que mais parecia um servo de Cheitã - o infernal - disse com voz cavernosa e lúgubre como o troar longínquo do pestilento simum:
- Nada temas de mim, ó degradado Hussein! Se deixei a gruta em que vivo e surjo agora ao teu encontro, foi unicamente para teu bem. Deixaste passar o largo período de um ano sem balbuciar, diante das pessoas que te auxiliavam, nem mesmo essas fórmulas banais e inexpressivas de agradecimento. Procedeste como o mais vil dos ingratos. Eis porque fizeste jus a uma generosa recompensa. Sou, como bem podes agora perceber, o Gênio da Ingratidão. Devo-te, pois, o prêmio prometido àqueles que não sabem ser reconhecidos às pessoas de quem recebem favores, auxílio e palavras boas de piedade ou encorajamento. Diz-me o que desejas e imediatamente te darei.
Decorridos os primeiros momentos de susto e estupefação que a monstruosa figura lhe causara, Hussein procurou dominar-se e buscar a calma com que refletir. Não ignorava ele, por certo - que fartas vezes conversara a tal respeito com sábios marabus - existir entre os efrites que povoam as trevas um ser de pavoroso aspecto, denominado o Gênio da Ingratidão, a quem cumpria premiar os que pelo mundo vivem a pagar com o mal, que podem, o bem, que recebem.
O efrite, ao ler a hesitação e a incerteza no olhar assustado de Hussein procurou animá-lo.
- Não percas tempo, infeliz Al-Karuf! Dize-me logo o que mais deseja a tua louca e insaciável ambição! Queres o palácio de um emir ou todos os tesouros do sultão?
- Senhor! - murmurou Hussein, a voz trêmula entrecortada pela emoção. - Sempre fui mais pobre do que um felá e mais desprezível do que um escravo das galeras! Jamais possui outros bens além dos andrajos que mal me cobrem o alquebrado corpo! Desejaria - já que a ventura me vem inesperadamente ao encontro - possuir riquezas que se não pudessem computar e assim viver a vida regalada e ociosa de um emir poderoso! Quero muito ouro, e em tal abundância, e tanto, que possa enfartar a ambição de um avarento.
- És bem modesto, ó Hussein! - replicou o efrite, com voz irônica e sarcástica. - Olha para trás e domina, se puderes, o teu assombro!
Voltou-se rapidamente o aguadeiro e viu a pequena distância uma longa fila de camelos ricamente ajaezados, que traziam todos enormes sacos de ouro intumescidos pelo seu conteúdo.
- Esses cem camelos que aí estão - volveu o Gênio - conduzem unicamente ouro e pedrarias que ninguém poderá apreçar. Leva-os contigo, ó afortunado Hussein!
O esfarrapado aguadeiro supôs que fosse enlouquecer, tão violenta e tumultuosa alegria lhe invadia o coração. As mãos tremiam-lhe, arfava-lhe, descompassado, o peito e os olhos pareciam querer sair-lhe das órbitas quando percorriam aquela extensa fila de dominadores do deserto.
Sabia Hussein perfeitamente que não deveria agradecer ao Gênio aquele fabuloso presente. Ai dele se balbuciasse naquele momento uma palavra de gratidão! A cólera do efrite seria tremenda e o seu castigo sem igual, mais rápido do que o raio fulminá-lo-ia no mesmo instante! Era preciso, ao contrário, mostrar-se ingrato e ofender aquele que tamanho benefício lhe trazia.
- Efrite miserável! - gritou Hussein, enchendo-se de coragem. - És mais vil e mais podre do que um chacal! - Que Cheitã, o Maligno, te persiga e te cubra de malefícios de toda espécie!
Replicou o Gênio:
- Bem sabes que as tuas palavras me deleitam e ferem agradavelmente o ouvido. Não compreendo, aliás, que possa alguém retribuir, a não ser com pragas e insultos, o favor que recebeu! Vai-te, pois, cão, filho de cão. - Que o Demônio encha de pústulas o teu corpo odioso e de tormento a tua existência inútil!
Fazendo ouvidos moucos a tais pragas, Hussein voltou as costas ao Gênio e afastou-se, resolvido a conduzir à cidade, sem perda de tempo, a esplêndida caravana de que era dono. Mal dera porém alguns passos, viu com espanto, surgir em meio dos camelos um enorme cão negro e monstruoso que passou junto dele a uivar assustadoramente.
Desaparecera o terrífico animal, quando Hussein, mal refeito do novo susto, ouviu gritos cruciantes do Gênio que clamava por socorro.
- O efrite - pensou - está sendo atacado pela horrível fera que deve ser fatalmente algum gênio inimigo, assim metamorfoseado.
Num movimento quase instintivo, que não soubera refrear, Hussein voltou-se e viu o Gênio da Ingratidão que lhe sorria diabolicamente. O cão fantasma não estava mais ali!
- Tolo que és! - exclamou o Gênio cheio de cólera. – Foste iludido por mim! Quis submeter-te a uma prova decisiva e procedeste como um imbecil! Deverias ter continuado o teu caminho sem te importares com os meus insistentes pedidos de socorro! Onde já viste, ó desgraçado!, um verdadeiro ingrato voltar-se para socorrer seu benfeitor? Perdeste o direito ao prêmio! Vais voltar para a miséria em que sempre viveste!
E isto dizendo o Gênio vibrou no mísero aguadeiro violenta pancada que o atirou ao chão desacordado.
Quando, passado algum tempo, Hussein recuperou os sentidos, notou que tudo desaparecera e que o envolvia negra e pesada escuridão. Fugira-lhe até a luz que sempre o guiara pelos caminhos de Allah! Estava cego!
E na velha mesquita de Barkuk o crente pode ler estas sábias palavras, gravadas em letras de ouro, à direita do "mirab".
"Quando vires, ó muçulmano!, um ingrato prosperar é porque dele se aproxima, fatal e inexorável, o castigo de Deus!".
Uassalã!
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