quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A Profecia do Dervixe

Conta-se que durante a revolução que agitou a velha cidade de Kabul, nos últimos meses do infeliz reinado do emir Abdallah El-Ghazi, apelidado "O Falso", ocorreu um episódio que aparece, aliás, narrado com notável brilhantismo, num dos mais belos poemas do inesquecível poeta muçulmano Abul Fares Ilfichtali.
Na primeira noite sem lua do mês de djomada, os rebeldes chefiados pelo valente Asakir resolveram assaltar de surpresa o palácio real. O ataque foi iniciado simultaneamente pelo rio, junto à ponte de Khalfa, e pela praça de Charikar, que ficou, depois de sucessivos combates, reduzida a um montão de escombros.
Poderosa guarda de mercenários curdos, assoldadados pelo déspota, resistiu até às primeiras horas do dia ao ímpeto dos assaltantes. Já mui alto ia o sol no céu da Pérsia, quando os infatigáveis combatentes de Asakir conseguiram, a golpe de audácia, esmagar os defensores e transpor os umbrais de mármore do palácio real. E sempre combatendo, de sala em sala, pelas ricas escadarias suntuosos aposentos, pisando cadáveres e saltando de kandjar em punho, sobre os que os enfrentavam, chegaram à deslumbrante sala do trono, onde se entrincheirara o último núcleo de resistência.
Foi no rico salão do emir - que os nobre curdos denominavam divã real - que mais acendeu a luta. Conta-se que o chão ficou atapetado de cadáveres e de guerreiros agonizantes.
Os rebeldes, obtida a vitória, passaram à triste faina de socorrer os companheiros feridos. Entre as numerosas vítimas encontraram um jovem de quinze anos que arquejava em meio de uma poça de sangue, o peito varado por uma lança.
Um dos soldados de Asakir, tocado pelo infortúnio do nobre menino, tomou-o nos braços, e, como não encontrasse onde acomodá-lo, deitou-o cuidadosamente no riquíssimo trono de ouro e púrpura. E ali, qual um formoso príncipe da lenda, no trono mais rico do Oriente, o moço guerreiro de Kabul deixou pender a cabeça sobre o peito ensangüentado e cerrou para sempre os olhos negros e serenos.
Asakir, o chefe, que casualmente passava naquele momento pelo divã real, ao ver o cadáver do malfadado jovem deitado no trono dos xás, interpelou os soldados que fitavam penalizados aquela bela esperança desfeita:
- Quem é esse menino? Como veio ele parar aqui?
- Senhor - respondeu um dos guerreiros. - Conheço, infelizmente, esse pobre adolescente. É o filho único do velho Harim Saad, rico mercador do bairro de Bali-Hassa. Por uma temeridade inqualificável ele entrou no palácio, juntamente com as nossas tropas, durante o assalto.
Exclamou Asakir:
- Que Allah, o único, castigue, sem compaixão, o pai inconsciente, que deixa um filho andar à solta pela cidade num dia em que a guerra semeia desenfreadamente a morte e o infortúnio! - Procura o velho Harim Saad! – ordenou. - Quero que o insensato, para seu castigo, venha buscar aqui o corpo desse desditoso e belo rapazinho!
O curdo que recebera a ordem do chefe, partiu sem demora para o bairro de Bali-Hassa. Lá chegando, correu à loja do velho Harim Saad a cuja porta o encontrou a fumar descuidado o seu narguilé de prata.
- Sabes onde está teu filho, ó insensato? - perguntou o soldado ao chegar.
- Sei, sim - respondeu-lhe o mercador. - Meu filho foi assistir ao assalto dos revoltosos ao palácio do real.
- E não receias que aconteça alguma desgraça ao pobre menino?
- Desgraça ao valente Ben-Harim? De modo nenhum - afirmou o ancião. - Tenho motivos para nada temer em relação à sorte de meu filho!
E, esclarecendo sua estranha atitude com a revelação de um segredo que lhe parecia muito caro, o velho Harim Saad ajuntou:
- Há doze anos, quando estive em Bagdá, consultei um sábio dervixe que se achava na cidade dos califas e pedi-lhe que lesse na areia sagrada o futuro daquele que seria o herdeiro único de meus bens. E as palavras desse santo muçulmano, tranqüilizaram para sempre o meu coração de pai. Desse dia em diante nada mais receio, nem poderia recear, pela sorte de meu estremecido filho!
Harim Saad erguendo-se orgulhoso, concluiu com voz calma e segura:
- E sabes, meu amigo, o que disse o astrólogo de Bagdá? Apenas estas palavras: "O teu filho, ó mercador, há de morrer num trono!"

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