Andando um dia o grande Al Manzor, califa de Córdova, disfarçado em mercador, a correr as ruas dessa cidade com o intuito de observar, completamente despercebido, alguns de seus aspectos, deparou-se-lhe um indivíduo que, pelo trajar exótico e maneiras extravagantes, despertava a atenção dos transeuntes, reunidos alvoroçados em torno dele.
- Conheces aquele homem? - perguntou o sultão ao vizir que o acompanhara, oculto, também, em cuidadoso disfarce.
- Senhor - respondeu o interpelado – Aquele muçulmano que ali está no meio daquele grupo, a contar histórias maravilhosas e a relatar velhos sucessos, chama-se Banassafar e, embora chegado há pouco tempo, já se tornou figura popular nestes arredores. Gaba-se de possuir invejável saber - e afirma que conhece todos os livros existentes no mundo. Querem alguns, porém, que ele não passe de um embusteiro muito hábil que merecia ser publicamente desmascarado!
- Por Maomé! - exclamou o califa. - Vou encarregar-me disto e hei de castigar esse aventureiro audacioso!
Determinou assim o sultão que o pseudo-sábio fosse levado a palácio e em presença dos nobres, ulemás e poetas da corte perguntou-lhe:
- É verdade que conheces todos os livros até hoje escritos não só no Islã, como no resto do mundo?
O arguto forasteiro, cuja audácia e sagacidade jamais o deixaram em situação embaraçosa, declarou peremptoriamente que não só conhecia como também já havia comentado todos os livros até então vindos a lume.
Tomou, então, o califa de um livro em branco, que ardilosamente mandara compor para ilaquear o aventureiro e perguntou-lhe:
- Dize-me, então, ó ilustre muçulmano, qual é a tua opinião sobre esta obra que tantas gerações têm visto?
O livro que Almanzor apresentou ao vaidoso Benassafar trazia luxuosa encadernação e em sua folha de rosto se lia gravado em caracteres dourados o seguinte título: "Últimos pensamentos engenhosos de Abul-Sanari".
Apenas lida a curiosa epígrafe, respondeu Benassafar:
- Sobejas vezes reli já esta obra admirável, glorioso califa!
Com grande espanto de todos os presentes - sabiam tratar-se de um livro em branco - o miraculoso homem prosseguiu:
- Posso assegurar-vos que este livro é magnífico. A ninguém faz mal; a todos é benéfico. Julgo-o superior às demais obras desse autor e - segundo os grandes críticos - é preferível às produções de Abenderrach. Em poder de um ignorante não têm as suas páginas valor algum; postas, porém, nas mãos de um letrado podem tornar-se mais preciosas do que o anel do grande Salomão!
Ao ouvir semelhante afirmativa, não se conteve o califa e exclamou irado:
Não passas de um vil mentiroso! O livro sobre o qual tanta coisa disseste tem todas as folhas em branco.
Benassafar, com enorme pasmo dos presentes, não deixou transparecer o mais leve indício de perturbação! O rancor do soberano, capaz de gelar o sangue nas veias do mais atrevido; a sua declaração, perigosa trama para o mais hábil - não tolheram sequer pequena parcela de sua muçulmânica serenidade. E disse:
- Senhor! Que Allah, o Exaltado, vos conserve até à consumação do século! Peço-vos, humildemente perdão. A resposta por mim formulada é exata e perfeita. Refere-se precisamente a um livro em branco. Que disse eu? Que esse livro não faz mal a ninguém e que a todos só pode fazer bem. É exatamente o caso de um livro em branco que, longe de ser nocivo, só pode ter utilidade para quem o vender e apurar no negócio boa quantia. Julguei-o superior às outras obras de Abul-Sanari. Esse homem não passa de um humilde obreiro, e este livro é, assim, a melhor das "obras" que ele tem produzido. Disse também que era preferível aos trabalhos de Abenderrach, o mísero idólatra que teve a audácia de criticar alguns versículos do Alcorão! Parece-me que um livro em branco é preferível sempre àquele que contenha conceitos aleivosos ao Livro de Allah! Afirmei, por fim, que o livro, posto nas mãos de um ignorante, não teria valor, mas que entregue a um sábio poderia tornar-se uma preciosidade. Para isto seria bastante que este imprimisse nas páginas em branco pensamento morais, versos delicados e ensinamentos úteis!
Almanzor viu-se obrigado a reconhecer que o inteligente Benassafar, vencendo-o naquela prova, fora mais hábil e mais esperto do que ele. Além disto, tendo concluído que o homem não passava de um sofista tão ardiloso quanto inofensivo, que andava a distrair o povo com suas declarações aparentemente fantásticas, mandou dar-lhe um traje de honra e deixou-o em paz, com boa recompensa, pelos caminhos de Allah.
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