terça-feira, 4 de outubro de 2011

Os Gestos

CONTA-SE que um dia o poderoso Seif Eddauhe, emir de Alepo, o terror da Síria, mandou chamar Kazim Ben-Tabb, o mais valente de seus guerreiros e lhe disse:
- Resolvi, meu bom Kazim, encarregar-te de certa missão delicadíssima, de cujo cabal desempenho, estou certo, dependerá a sorte de meu trono e a vida de milhares de crentes do Islã! Partirás hoje com uma escolta de cem cavaleiros para o oásis de Bechared, junto à fronteira. Lá encontrarás à tua espera uma embaixada de Nicéforo, o rei cristão, que deseja ter comigo um entendimento amistoso para que possamos estabelecer as bases de um tratado de paz e as negociações indispensáveis à permuta de prisioneiros.
- Tudo farei, ó generoso Emir! - respondeu Kazim - para que os vossos interesses não sejam feridos nem a vossa glória ofuscada pela cobiça do inimigo!
- Exijo, porém, de ti, ó valente e fiel Kazim! - continuou o emir - que procures sempre tratar o embaixador cristão com altivez e superioridade. Não te esqueças um só instante de que os cristãos do rei Nicéforo são homens de outras crenças que negam o valor do nosso profeta Mafoma (com ele a oração e a glória!) e escarnecem os santos ensinamentos do Alcorão, o Livro Sagrado de Allah. Ordeno-te, por isso, que não dirijas nunca a palavra ao embaixador bizantino. A tudo o que ele disser responderás apenas com gestos. Por esse meio concordarás ou não com as propostas que nos forem feitas. De igual maneira poderás ameaçar, insultar, ou repelir ofensas! Estou em que o maldito cristão se sentirá desse modo profundamente humilhado e, reconhecendo a nossa superioridade, temerá o nosso poder! Vai, Kazim! Queira Allah, o Altíssimo, que sejas digno da elevada tarefa que te pesa sobre os ombros!
- Escuto-vos e obedeço! - respondeu Kazim, inclinando-se humilde e beijando a mão do poderoso senhor de Alepo.
 
***
 
À mesma hora em que o rancoroso Seif dava secretamente tão rigorosas instruções a seu lugar-tenente, o rei Nicéforo Focas, senhor de Bizâncio, em sua barraca de guerra, conversava com Heráclito Constantino, que deveria ser o embaixador cristão àquela conferência.
- Meu filho - dizia bondoso o grande imperador, - o encargo delicado e difícil que vais cumprir é dos que exigem de um homem muito talento, presença de espírito, sagacidade e coragem. Vais tentar, se Deus quiser, entendimento com muçulmanos cruéis, homens intolerantes que negam a divindade de Jesus, Nosso Senhor, e os Santos Evangelhos! É necessário, portanto, para nossa completa e perfeita segurança, que não nos mostremos humildes diante desses adoradores de Mafoma. Para tanto, é mister que o embaixador cristão saiba tratar os aventureiros do Islã com superioridade e desdém.
- Que preciso fazer, senhor? - perguntou Heráclito. - Como devo proceder na presença dos chefes muçulmanos?
- É muito simples - esclareceu o imperador. - A tudo o que o embaixador muçulmano te disser, a todas as propostas ou sugestões que te forem feitas, responderás apenas com gestos. Quando eles compreenderem o desprezo com que são por nós tratados, temerão nosso poder e não mais hesitarão em propor uma paz vantajosa para a cristandade!
Dias depois, junto ao oásis de Bechareh, encontraram-se as duas embaixadas rivais: a muçulmana e a cristã.
Kazim Ben-Tabb, valente e ousado, à frente de seus guerreiros, saudou à maneira dos árabes o jovem Heráclito, que se via a poucos passos, acompanhado de oficiais e guardas bizantinos.
Como se quisesse responder àquela saudação do adversário, Heráclito ergueu o braço e apontou para o céu.
- O cão bizantino – refletiu Kazim – não quer dirigir-me a palavra. Pensa humilhar-me com isso! Veremos quem leva a melhor! Já compreendi perfeitamente o que ele deu a entender!
E em resposta ao gesto de Heráclito o muçulmano apontou para o chão.
A resposta que o árabe assim exprimia agradou ao embaixador bizantino que, depois de sorrir satisfeito, fez um segundo gesto: estendeu o braço direito apontando com o indicador para o rosto bronzeado de Kazim.
O muçulmano como se tivesse sido atingido por um insulto, tremeu de rancor. Teria ele adivinhado o pensamento de seu interlocutor?
Como quer que fosse, compreendeu ele o que lhe queria dizer Heráclito e em resposta apontou, arrogante e ameaçador, com dois dedos abertos em V, para o rosto do cristão.
Todos os que assistiam a tão extraordinária cena não sabiam como explicar aquele desconchavo. Por que estavam os embaixadores - como se um gênio poderoso a ambos tivesse emudecido - a dirigir-se gestos de dementes?
Seria, para eles, essa estranha linguagem, mais eloqüente do que a da palavra?
Mais assombrados ficaram ainda os circunstantes, quando perceberam que o embaixador cristão, tendo compreendido a Kazim, retorquiu risonho, amável, com um gesticular complicado, de sentido tão oculto como os anteriores; apontou para o chão e a seguir levou a mão ao peito!
Esse terceiro gesto - que, como os anteriores, nada parecia exprimir - ateou grande fúria no peito do muçulmano. O exaltado Kazim Ben-Tabb, com os lábios a tremer de ódio, levou a mão à cinta, junto à espada, e em seguida apontou para uma escrava síria que se achava a pequena distância.
Aquela nova e enigmática gesticulação fez sorrir a Heráclito, cuja fisionomia serena e alegre refletia fielmente grande satisfação de espírito, e não hesitou em responder ao seu adversário, formulando a resposta sob uma forma lacônica, simples, sem artifícios: abriu os braços em cruz num gesto simples e amistoso.
Ao ver o cristão em tal atitude, Kazim, o árabe, mostrou-se dominado por desmedido rancor. Tomou de um azorrague de couro e fez, no ar, várias vezes, menção de açoitar furiosamente o seu interlocutor.
Os oficiais que os cercavam, percebendo que os dois emissários insistiam naquele estranho capricho, acharam melhor que fôsse dada por finda a entrevista.
Kazim partiu para Alepo com os seus guerreiros, enquanto Heráclito seguia pela estrada das caravanas, em demanda do acampamento cristão.
Chegado de regresso ao acampamento bizantino, o jovem Heráclito foi ter com o imperador cristão e disse-lhe:
- Inspirado estava Vossa Majestade quando pensou em fazer as pazes com os muçulmanos de Alepo. Do entendimento que acabo de ter em Bechareh com o embaixador Kazim Ben-Tabb, pude concluir, com absoluta segurança, que os nossos adversários são homens dignos, pacíficos e generosos e com tendências cristãs. Creio até que estão inclinados a aceitar os ensinamentos de Jesus, Nosso Senhor!
- Deus seja louvado! - murmurou o imperador.
- Que te disse o embaixador do emir Seif? Como conseguiste informações dos nossos inimigos?
- De modo muito simples - esclareceu Heráclito. No firme propósito de obedecer à recomendação de Vossa Majestade não proferi uma única palavra diante do emissário muçulmano. Procurei exprimir os meus pensamentos por meio de gestos, gestos simples e expressivos que não deixaram a menor dúvida. Creio que o árabe, arrogante e astuto, compreendeu a minha intenção e tomou atitude idêntica. Sem articular palavra, respondia por meio de gestos a tudo que eu lhe dizia. Comecei por erguer o braço para o alto, apontar para cima, assegurando esta verdade sublime: “Deus fez o céu!”.
Respondeu-me o árabe apontando para o chão: - “Fez a terra também!”. Fiquei encantado com essa resposta, e estendendo o braço para a frente, apontei-lhe o rosto com o indicador. A frase era bem clara: - "Fez a você, meu filho!". Com o braço direito estendido, dois dedos abertos em V, replicou: - "Fez a nós dois!". Essa afirmação pareceu-me inteligente, hábil e perfeita. Querendo, porém, pôr à prova o alento do meu digno interlocutor, apontei para o chão e levei a mão ao peito. Era evidente a minha afirmação: - "Do barro do chão Deus fez o homem!". O muçulmano levou a mão à cintura, e apontou para uma escrava, acrescentando: - "E de uma costela do homem fez a mulher!". Fiquei sinceramente maravilhado com a perfeição da resposta. Abri os braços em cruz para exprimir: - "Foi Deus crucificado!". O árabe respondeu-me sem hesitar, exibindo um azorrague: - "Foi também açoitado!".
E o jovem Heráclito concluiu emocionado:
- Como acabo de provar a Vossa Majestade, os muçulmanos de Alepo são bons, generosos e apreciam com visível simpatia a religião de Jesus, Nosso Senhor! Quero crer que Vossa Majestade deve fazer, o mais depressa possível, as pazes com o emir Seif enviando-lhe hoje mesmo uma caravana com ricos e belíssimos presentes!
Aceitou o rei Nicéforo a sugestão de seu talentoso amigo e determinou que, sem mais demora, fosse organizada aparatosa caravana com as mais belas dádivas a serem oferecidas ao emir de Alepo.
 
***
 
Vejamos, entretanto, o que ocorria na tenda do emir Seif, o implacável inimigo dos cristãos.
Ao chegar de volta à presença do rei dos árabes, disse-lhe Kazim em tom arrebatado:
- Venho dar-vos conta, senhor, da honrosa missão que me foi confiada. Pela conversa que tive com o embaixador cristão, acho que grave e séria ameaça pesa sobre os muçulmanos de Alepo. Estou certo de que em breve seremos atacados impiedosamente pelos soldados do rei Nicéforo!
- Por Allah! - estranhou o emir. – Que conversa foi essa que tiveste com o cão bizantino? Não te ordenei que evitasses dirigir palavras ao cristão?
- As vossas ordens, Senhor, foram rigorosamente cumpridas - explicou Kazim. - Não pronunciei durante a entrevista uma única palavra. O cristão, como se adivinhasse desde logo a minha intenção, procedeu para comigo do mesmo modo: a tudo respondeu por meio de gestos!
- É singular! - estranhou o emir. - Como teria ocorrido a entrevista na fronteira?
Respondeu o oficial inclinando o busto:
- Vou relatar, sem esquecer os menores incidentes, tudo o que ocorreu durante a minha entrevista com o emissário dos infiéis.
E depois de breve pausa narrou o seguinte:
- Logo que se defrontou comigo, o embaixador inimigo ergueu o braço e apontou para cima. Compreendi a significação clara daquele gesto. Dizia apenas: "Enforco-te, miserável!". Sem hesitar repeli aquela ameaça grosseira: apontei firme para o chão e com esse gesto revidava: - "Enterro-te, desgraçado!". O infiel, continuando com seu rosário de ameaças, apontou com o indicador para o meu rosto. Percebi logo que ele proferia nova bravata: - "Furo-te um olho!" Respondi imediatamente, apontando-lhe com dois dedos: - "Furo-te logo os dois!".
Percebendo o infiel que eu não me intimidava com tão ridículas fanfarronadas, julgou que teria êxito levando a sombra da ameaça para os nossos soldados. E para exprimir seus pérfidos intuitos apontou para o chão, levando em seguida a mão ao peito. Traduzi, sem hesitação, o sentido desse gesto. Era evidente que ele queria dizer: - "Neste chão serei capaz de deixar estendidos todos os teus míseros guerreiros". Muito clara e destemida foi minha réplica. Mostrei-lhe a minha espada e apontei para uma escrava dizendo: - "Com esta espada reduzirei todos os teus à escravidão!". Ele compreendeu, por certo, o que lhe disse, pois à vista da minha energia abriu os braços como se exprimisse diante de todos: - "O teu emir acabará de braços abertos implorando piedade!". Esse insulto grosseiro revoltou-me. Respondi-lhe acenando com um azorrague: - "Com este açoite vos castigaremos, a ti e ao teu imperador!".
- Infame! - bradou o emir com os olhos chamejantes de negro rancor. - Vou vingar esses insultos! E deu ordem aos seus oficiais para que fosse organizado um corpo de exército com tropas escolhidas. Ia começar, mais furiosa do que nunca, a luta sangrenta entre muçulmanos e cristãos!
Nesse mesmo dia as forças de Alepo puseram-se em marcha.
Quando chegaram junto ao oásis de Bechareh, encontraram uma caravana cristã que se dirigia para Alepo.
Essa caravana, segundo o emir Seif logo averiguou, conduzia ricos e belíssimos presentes que lhe enviava o imperador Nicéforo, de Bizâncio!
E os mensageiros cristãos contaram ao chefe árabe que as cidades da cristandade estavam em festa. Pelo entendimento havido entre os embaixadores, junto ao oásis de Bechareh, o imperador Nicéforo Focas concluíra que devia fazer imediatamente a paz com os seus vizinhos.
Envergonhou-se o emir Seif-Edhauhe ao perceber que a sua atitude belicosa era chocante diante das intenções pacíficas e cativantes de seus adversários. Sem compreender a razão daquele desfecho resolveu aceitar a paz, e a paz foi feita.
E assim, por não se terem entendido, reinou, afinal, a paz entre os dois grupos que pareciam separados por ódios intransponíveis.

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