- Prefeito – disse o rei – esta noite, levantando-me casualmente a desoras, cheguei à janela e avistei ao longe no meio da escuridão da cidade uma pequenina luz azul, muito viva e brilhante. Estou intrigado com esse caso e desejo vivamente saber quem passou a noite a velar. Ordeno-lhe que abra um rigoroso inquérito a fim de apurar a razão dessa vigília.
- Escuto e obedeço – retorquiu o prefeito de Jidda, capital do Hedjaz, inclinando-se respeitosamente. – Parece-me, porém, inútil esse inquérito! Cumpre-me dizer que aquela luz provinha do oratório da minha casa!
E diante do espanto indisfarçável do rei, ele ajuntou modesto, inflectindo a cabeça para o peito:
- Eu e minha família passamos a noite em orações, pedindo a Deus Onipotente pela preciosa saúde de Vossa Majestade!
- Obrigado, meu bom amigo – tornou o monarca sinceramente comovido, – em muito tenho sua amizade e dedicação.
E acrescentou solene, com voz sonora e cheia:
- Saberei corresponder aos cuidados que lhe mereço.
Retirando-se o prefeito, mandou o rei chamar o seu grão-vizir, o respeitável Maollim, que acumulava na corte do sultão as elevadas funções de ministro e secretário.
- Meu caro Maollim - declarou risonho o rei – resolvi recompensar com mil dinares de ouro o prefeito desta formosa cidade, Jidda!
- Mil dinares de ouro? Por Allah! É muito dinheiro! – atalhou logo o grão-vizir, esgazeando os olhos, tomado de vivo espanto. – Que teria feito o governador da cidade para merecer tão grande mercê?
- Praticou uma ação nobre e sublime – justificou o soberano.
E narrou com a maior simplicidade o caso da luz, rematando-o com a extraordinária confissão que lhe fizera pouco antes o prefeito.
- Permita-me ponderar – proferiu o ministro – que Vossa Majestade está sendo iludido por esse homem indigno. O prefeito, segundo posso provar, não tem família e só sabe orar nas mesquitas quando a isso é obrigado. Vive miseravelmente como um avarento em seu sórdido casebre para além do bairro judeu!
- Mas... e a pequenina luz azul! - refletiu o rei, - donde, então provinha ela?
- Vejo-me obrigado, ó rei generoso!, a confessar a verdade – contraveio o ministro com humildade. – Essa pequena luz azul que feriu os augustos olhos de Vossa Majestade era a lâmpada de azeite que ilumina a minha vida de estudos. Passei a noite acordado, cogitando acerca dos graves problemas e das múltiplas questões que Vossa Majestade deve resolver na audiência de hoje! Juro pelo Alcorão que essa é a verdade!
- Grande e esforçado amigo! – tornou radioso o ingênuo monarca, abraçando o ministro. – Como lhe admiro esse seu amor ao cumprimento do dever.
E jubiloso disse-lhe:
- Palavra de rei, ó Maollim! Terás brevemente uma recompensa digna da tua dedicação!...
Mal se retirara o ministro, mandou o rei chamar o general Muhiddin, chefe das tropas muçulmanas do Hedjaz, e contou-lhe que estava resolvido a conceder o título de xeque de Loheia ao seu digno ministro Maollim. O general devia destacar, portanto, um corpo de quinhentos soldados que ficariam permanentemente à disposição do novo dignitário do Hedjaz.
E o bom monarca, sem nada ocultar, contou ao general a história da luz e a dedicação do bom ministro.
- E Vossa Majestade acreditou nas falsas palavras de Maollim? – estranhou o general, tomado de indizível admiração. – Peço especial permissão para provar que esse audacioso vizir, esquecendo o respeito que deve ao nosso glorioso sultão, mentiu como um infiel!
Mentira o prefeito! Mentira também o ministro! Como poderia ele, o rei, apurar a verdade sobre o caso? Como descobrir o mistério da luzinha azul?
- Era minha intenção, ó rei afortunado – confessou modesto o general – ocultar a verdade. Vejo-me agora, porém, obrigado a revelá-la. A pequenina luz que durante a noite passada atraiu a atenção de Vossa Majestade provinha apenas da minha tenda de campanha!
- De sua tenda, general! – clamou admirativamente o soberano árabe, mais uma vez surpreendido.
E o general não hesitou em dar terceira versão ao caso. Os boatos de um provável levantamento revolucionário de algumas tribos do interior haviam-no alarmado. Com receio de que os beduínos rebeldes e seus aliados revoltosos durante a noite viessem atacar o palácio real, ficara ele, para maior garantia da vida do rei, acampado nas cercanias da cidade com algumas forças de sua absoluta confiança.
Por Deus! Que valentia! Que heroísmo! O poderoso sultão não sabia como agradecer ao chefe de suas tropas aquele serviço extraordinário, aquele zelo tão grande pela ordem e pelo trono!
- Que farei? – cogitava ele depois que o general se despedira. – Vou conceder-lhe o título excepcional de príncipe do Hedjaz e uma pensão anual de vinte mil dinares! Não... ele merece muito mais ainda – salvou-me a vida... a coroa...
Depois de muito refletir e como não chegasse a uma conclusão satisfatória, o apavorado monarca resolveu consultar o judicioso ulemá Ali-Effendi, seu velho mestre e conselheiro.
- Na minha fraca opinião – ponderou o sábio muçulmano – Vossa Majestade não deve acreditar nem no prefeito, nem no ministro, nem no general. Quero crer que a tal luz provinha do novo farol em El-Basin que indica aos navegantes a entrada do porto, assegurando-lhes o bom caminho em noites de tormenta.
O rei alçou para o sábio os olhos surpresos.
- Era então a luz do farol! – exclamou.
O prudente ulemá aconselhou-o a que verificasse naquela mesma noite quem falava a verdade.
E assim, três horas depois da última prece, quando já bem adiantada ia a noitele="font-size: 10.0pt; font-family: Verdana">E assim, três horas depois da última prece, quando já bem adiantada ia a noite, ergueu-se o sultão El-Khamir do régio leito, chegou à varanda, estendeu o olhar por sobre o panorama da cidade que lhe dormia aos pés. Uma surpresa estranha o aguardava: como já era conhecida de todos a notícia das prometidas recompensas, a cidade surgia naquela noite extraordinariamente iluminada. Nunca se viu tanta luz! Eram milhares de lâmpadas, lanternas e lampiões! Queriam todos agradar ao poderoso soberano: a casa do ministro, então, mais parecia o serralho de um califa em noite de festa no mês de Ramadã!
E o crédulo rei do Hedjaz compreendeu, então, que no seu rico e glorioso país para cada súdito honesto e dedicado havia um milhão de mentirosos e bajuladores.
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