"A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito denuncia a queda" (Salomão).
Velho milômed que eu conheci entre os judeus mais pobres de Malta contou-me uma noite a lenda famosa que os rabis repetem há mais de mil e oitocentos anos:
Vivia outrora a Judéia escravizada ao jugo de Roma, e o destino dos filhos de Israel era como um passatempo capaz de recrear as horas feriadas de Tibério César. Tibério! Nome menos odiado do que temido e mais temido do que respeitado.
Os homens mais ricos de Jerusalém compreenderam que seria prudente captar as boas-graças do tirano. E, para isso, enviaram a Roma um mensageiro com riquíssimo presente que deveria ser entregue ao próprio imperador.
Consistia a dádiva dos israelitas numa pequena caixa cheia de pedras preciosas: brilhantes, rubis, pérolas e esmeraldas. A coleção, por sua beleza, deslumbraria o artista e, pela sua riqueza, arrebataria o ambicioso. Ao receber o precioso escrínio era possível que César olhasse com mais simpatia para a triste sorte dos seus numerosos súditos que arrastavam uma vida de provações na longínqua província da Ásia.
Isaac, o enviado dos Judeus, era um homem honesto, de sentimentos puros, e de alma simples.
Ao chegar a Roma recolheu-se em uma hospedaria que lhe pareceu segura. Enganou-se na escolha. O dono dessa hospedaria não passava de refinadíssimo ladrão e, sem que Isaac percebesse, retirou da caixa as pedras preciosas e encheu-a de terra.
No dia seguinte o judeu, levando sob o braço o presente, foi recebido em audiência solene pelo imperador romano.
Aberta a caixa, Tibério ficou surpreendido ao vê-la cheia de terra. A decepção exasperou-o e, tomado de grande rancor, esbravejou:
- Ó cão miserável! Por Júpiter! Não se ofende impunemente a César, senhor de Roma!
E, voltando-se para Lucius, seu auxiliar de confiança, ordenou em novo assomo de ira:
- Que seja degolado o mensageiro dos judeus.
Lucius, o nobre romano que deveria fazer com que a sentença fosse cumprida, era um homem sensato e piedoso; e, compadecido pela desdita do judeu, deliberou salvá-lo. Disse, então, ao soberano, num tom de voz timidamente insinuante:
- César! A vossa ordem pode traduzir uma injustiça capaz de abalar as colunas do Templo! O presente que o judeu vos trouxe, ao parecer desvalioso, representará, talvez, uma riqueza incalculável para o povo romano!
- Como assim? - estranhou Tibério. - Não percebo o sentido de tuas palavras, meu caro Lucius. Que valor poderá existir em um punhado de terra?
- Existe na Judéia - acudiu Lucius com amável interesse - um jardim onde Diana repousou três vezes e as terras que formam esse recanto, os deuses tornaram milagrosas. Quem sabe se essa terra que chega hoje da Palestina, não é um punhado da "terra milagrosa" do jardim encantado? Vale a pena experimentar.
Teu conselho é razoável - concordou o imperador, fortemente estimulado na sua curiosidade. - Experimentemos os feitos milagrosos da terra, e depois resolverei sobre o destino a dar a esse mísero israelita.
Nesse mesmo dia um general romano ia partir para a guerra. Lucius aconselhou ao imperador fizesse cair um pouco de terra milagrosa sobre os ombros do general. O efeito foi maravilhoso. As forças romanas desbarataram o inimigo e obtiveram esmagadora vitória.
A dúvida desapareceu do espírito de César. O punhado de terra, com que os judeus o haviam presenteado, era um talismã, capaz de trazer para Roma, a invencível, todas as glórias e todas as riquezas.
A primitiva sentença do imperador foi revogada. Ordenou que dessem ao judeu uma bolsa cheia de ouro, fê-lo passear em triunfo pelas ruas de Roma e, em sinal de regozijo, ordenou que realizassem no circo um grande espetáculo.
Isaac, antes de iniciar a sua viagem de regresso, teve ocasião de pernoitar na mesma hospedaria em que havia sido roubado. O indigno estalajadeiro ficou admiradíssimo ao ouvir o relato dos episódios ocorridos no palácio do César e quase morreu de inveja ao conhecer as honrarias com que o israelita fora distinguido. E tudo isso por causa da terra que ele próprio pusera dentro da caixa para ilaquear a boa-fé do judeu!
E, dois dias depois, o dono da hospedaria foi ter à presença de Tibério. Estava certo de conquistar a amizade do imperador, pois levava - para oferecer de presente a César - uma caixa cheia de terra, e essa terra era precisamente igual àquela que fizera a fortuna do emissário judeu.
Terra! - estranhou Tibério ao abrir a caixa que lhe trouxera o pérfido invejoso. -Será também milagrosa como aquela que recebi há tempos, de um israelita?
- Decerto que sim, ó César divino! confirmou o intrujão num tom meio espantado, limpando a testa. - Tirei-a do mesmo lugar! Apanhei-a junto ao portão do jardim de minha casa!
Tibério, ao ouvir essa resposta, expandiu-se com uma gargalhada tão vibrante que chegou a despertar dois poetas favoritos que dormiam no fundo do salão.
- Insensato! - cascalhou o tirano, bufando, apopléctico. - Julgas, porventura, que as terras do teu jardim foram também beneficiadas pela graça dos Deuses! Es um demente! Terra! Para que desejo eu terra, se tenho à minha disposição todas as terras do mundo?
E, tendo proferido tais palavras, ordenou Tibério, na veemência de sua fúria, que o estalajadeiro fosse arrastado, com sua caixa de terra para o fundo de uma prisão, onde pereceu amargurado pelo ódio e pelo desespero que lhe enchiam o torpe coração.
*
E o velho milômed, que eu conheci entre os judeus mais pobres de Malta, ao terminar a sua narrativa disse-me:
- Repara, meu amigo. A terra torna-se milagrosa para salvar o justo e abre-se em chamas violentas para castigar o perverso.
Os ímpios, apesar de suas juras e trejuras, serão arrancados de cima da terra e os que obram iniqüidades serão dela extirpados.
Há um caminho que parece ao homem, direito e, contudo, o seu roteiro guia para a morte. Não armes traições ao justo e não perturbes o seu repouso.
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