História mal contada refere-se a três brâmanes que iam certa vez, em peregrinação ao país de Nagpur. Chamava-se Batavana o primeiro, o segundo Latasari e o terceiro, justamente o mais jovem, era conhecido pelo nome de Viprasada.
Um dia, depois de fatigante caminhar, chegaram os três amigos a um grande caravançará, perto da cidade de Jaipur, pouso forçado de todas as caravanas da Índia e da Pérsia.
- Meus amigos - disse Batavana que era o mais velhos e o mais cauteloso dos brâmanes, - o dinheiro que possuímos para as despesas da longa viagem que empreendemos se resume em trinta moedas de ouro, das quais cada um de nós tem direito a dez. Não convém que apareçamos no caravançará com esse dinheiro, pois estaríamos sujeitos à cobiça dos aventureiros e poderíamos ser roubados pelos incorrigíveis ladrões do deserto. Sou, portanto, de aviso, que guardemos o nosso pecúlio em lugar discreto e seguro, onde o iremos buscar amanhã ao reiniciarmos a nossa jornada.
Latasari e Viprasada concordaram prontamente com o alvitre sugerido pelo prudente Batavana.
E ao cair da noite, os três brâmanes dirigiram-se a um lugar ermo onde uma grande árvore ensombrava discreto recanto. Ali, sem que ninguém pudesse perceber, enterraram as trinta moedas de ouro.
No dia seguinte, pela manhã, feitas as preces habituais, dirigiram-se os três brâmanes ao lugar em que haviam ocultado o dinheiro, mas com surpresa nada encontraram.
- Fomos roubados! - gritou Latasari - e, cheio de cólera, apontando para Batavana, ajuntou:
- Foste tu, ó pérfido companheiro, que tiveste a lembrança de esconder aqui o nosso dinheiro para vir retirá-lo indignamente durante a noite! Não passas de um vil ladrão!
- Víbora peçonhenta! - bradou Batavana. - Tu me acusas, como um torpe caluniador! Estou inocente e não me pesa na consciência a infamante ação que me atribuís!
- Ladrão!
- Chacal!
- Miserável tratante!
E os três brâmanes insultavam-se mutuamente aos gritos, cada um deles acusando veementemente como autores do furto os dois outros companheiros de jornada.
Nesse momento passava casualmente pela estrada, de regresso de uma caça noturna, o poderoso rei Odaba, senhor de Jhansi e Benares.
Ao notar o rei o desmedido e apaixonado furor com que os três brâmanes trocavam entre si toda sorte de impropérios, fez parar a sua comitiva e ali mesmo interrogou os exaltados peregrinos.
Batavana narrou-lhe respeitosamente tudo o que ocorrera e terminou jurando pelo céu de Brama que estava inocente do crime de que o acusavam.
Ordenou o rei que os três brâmanes fossem meticulosamente revistados. Guardas experimentados nesse delicado mister examinaram com o maior cuidado os três viajantes, mas nada encontraram de suspeito.
- Pelas cinzas de Tantrai! - exclamou o rei. - Um desses sacripantas é o ladrão, e como jurei mover guerra de morte aos malfeitores, prefiro castigar dois inocentes a ter de perdoar o autor de um furto.
E, dirigindo-se aos chefes dos seus guardas, ordenou energicamente:
- Que sejam imediatamente enforcados esses cães hindus!
Ao ouvir tão impiedosa sentença, o mais velho dos brâmanes atirou-se aos pés do rei e, depois de beijar humilde a terra entre as mãos, assim falou:
- Senhor! Por um dever de consciência não posso ocultar a verdade! Os meus dois companheiros estão inocentes e nada têm que ver com o roubo praticado! O ladrão sou eu!
E narrou, com voz calma e pausada, o seguinte:
- Levantei-me durante a noite, sem que os meus companheiros percebessem, saí do caravançará, fui ter ao lugar onde havia ocultado o dinheiro, retirei-o de lá escondendo-o debaixo daquela pedra que se avista daqui. Feito isso voltei para o caravançará e deitei-me novamente para só acordar hoje pela manhã. Com receio de que os meus amigos descobrissem o meu crime procurei acusá-los a fim de afastar de mim qualquer suspeita! Sou, ó Rei, o único culpado e só eu mereço o castigo de morte!
- A minha palavra está dada - explicou o rei. - Jurei que enforcaria o ladrão e sou forçado a ordenar a tua imediata execução!
Mal ouvira tais palavras, o segundo brâmane - como se fosse impelido por uma força irresistível - aproximou-se do rei e disse humilde:
- Senhor! Não posso ficar indiferente ao ouvir de vossos lábios a sentença que condena à morte o meu amigo. Batavana está completamente alheio ao roubo das trinta moedas. O verdadeiro ladrão sou eu!
E o brâmane Latasari narrou o seguinte:
- Quando ia bem profunda a noite, sem que meus companheiros percebessem, levantei-me cauteloso, saí do nosso refúgio e vim ter aqui sob a árvore junto da qual havíamos enterrado o dinheiro. Retirei as trinta moedas de ouro e escondi-as, com o maior cuidado, ao pé daquela grande palmeira que se ergue junto ao caravançará! Hoje pela manhã, quando os meus companheiros deram pela falta do depósito, procurei acusar Batavana, a fim de que não pesassem sobre mim as suspeitas. Sou eu, portanto, ó rei generoso, quem merece o castigo!
- É de causar assombro a tua declaração, replicou o rei. E o caso já se torna mais interessante para mim. Se Batavana não roubou as trinta moedas mentiu confessando-se autor de um crime que não praticara.
Ordenou por isso o monarca que Batavana e Latasari fossem castigados - um, como ladrão confesso e o outro, por ter faltado à verdade perante a pessoa sagrada do rei.
Nesse momento, porém, o terceiro brâmane ajoelhou-se aos pés do soberano e, depois de beijar humildemente a terra entre as mãos, assim falou.
- Rei de Svisthri e de Sangara! Que o Senhor da Compaixão lance sobre vós o Seu olhar misericordioso! Não tenho coragem para assistir ao sacrifício dos meus dois bons amigos Batavana e Latasari. Ambos estão inocentes! O ladrão das trinta moedas sou eu!
E, à semelhança de seus companheiros, o brâmane Viprasada contou que se levantara durante a noite sem que seus amigos notassem e, indo ao lugar onde haviam escondido o dinheiro, de lá retirara as trinta moedas escondendo-as depois junto a um marabuto (*) nas proximidades.
- Se quereis castigar o verdadeiro culpado, ó Rei - concluiu Viprasada, - sobre mim unicamente deveis fazer recair o rigor de vossa justiça!
- Tabarahu! - exclamou o rei ao ouvir inesperada confissão do terceiro brâmane. - Como descobrir, afinal, o culpado? Quero saber certo qual desses brâmanes é o ladrão, pois asseguro que dos três apenas um confessou a verdade! Que sejam feitas pesquisas junto à pedra, debaixo da palmeira e nas proximidades do túmulo do marabu!
Essa ordem do rei trouxe como conseqüência uma descoberta notável. O oficial encarregado das buscas encontrou debaixo da pedra indicada pelo primeiro brâmane trinta moedas de ouro; junto à palmeira a que se referira Latasari, foram também encontradas outras trinta moedas de ouro; igual quantia foi achada a poucos passos do túmulo do marabu!
- Pelo ídolo sagrado de Mastuj! - exclamou o rei - como é possível que a mesma quantia seja roubada três vezes e que trinta moedas se transformem em noventa? É possível que esses homens não tenham mentido, mas essa história está mal contada!
Os brâmanes, porém, juraram que haviam dito a verdade. Cada um deles garantia que roubara trinta moedas, sem que soubessem explicar o aparecimento das sessenta que sobejavam.
- Essa história está mal contada! - repetia o rei. - Não posso admitir essa multiplicação das moedas roubadas!
E resolveu prender os três brâmanes até que a verdade fosse devidamente apurada e esclarecida.
Os sábios matemáticos, chamados ao palácio do soberano, e consultados sobre o caso, não souberam explicar pelas fórmulas algébricas, nem pelas figuras da Geometria, o mistério das trinta moedas que se transformaram em noventa por terem sido roubadas três vezes!
***
O rei Odaba, ao ver que eram baldadas as pesquisas, inúteis os interrogatórios e infrutíferos os estudos a que mandara proceder, fez anunciar ao povo que daria uma boa recompensa a quem desvendasse o caso singular dos três brâmanes.
Dez elefantes (sendo um deles branco!), duzentos camelos, um palácio e três caixas de jóias, eram, na verdade, um prêmio capaz de levar toda a sagacidade do Islã à tentativa de resolver o famoso enigma!
Nesse mesmo dia foi ter à presença do rei um jovem persa que se dizia capaz de explicar satisfatoriamente o intrincado mistério das noventa moedas.
- Quero apenas, ó rei magnânimo! - disse o desconhecido - duas recompensas. A primeira é que V. M. mande perdoar os três brâmanes, e a segunda, que me conceda a mão de sua filha!
- Cão atrevido! - exclamou o rei, exaltado. - Aceito a tua louca proposta sob uma condição: se não souberes resolver o caso das noventa moedas serás degolado sem remissão!
Na presença dos juizes, nobres e filósofos chamados ao palácio, o jovem persa narrou o seguinte:
- O meu nome é Kibrizi-Mehemet e sou natural de Chiraz. Tendo resolvido fazer uma longa viagem pelo mundo, recebi de meu pai duas bolsas com dinheiro. A primeira continha o suficiente para os meus gastos durante a jornada. "Quanto ao dinheiro da segunda bolsa - disse-me meu velho pai, - peço-te que o empregues apenas em evitar brigas ou desavenças entre os homens". Jurei que assim procederia e parti. Devo dizer que sou prudente e nunca procuro asilo nos caravançarás. Certa noite estando como de costume abrigado no alto de uma árvore, vi chegarem três brâmanes, ouvi a combinação feita entre eles e observei que um deles enterrou, exatamente debaixo do lugar em que eu me encontrava, as trinta moedas de duro. Fiquei de sobreaviso. Durante a noite ouvi leve ruído. Era o primeiro brâmane que vinha cautelosamente roubar o dinheiro que ele próprio enterrara. - "Amanhã vai haver briga entre eles" - pensei. E mal o ladrão se afastara, desci da árvore e coloquei no lugar outras trinta moedas de ouro, voltando em seguida, para o meu refúgio. Momentos depois vi o segundo brâmane aproximar-se da árvore. E, com espanto, compreendi que ele viera, como o anterior, para roubar os companheiros. E, resolvido a cumprir o juramento que fizera a meu pai, desci da árvore novamente e repus a quantia roubada. Era o meio que encontrara de evitar a rixa que antevia fatal no dia seguinte. Pouco antes de nascer o sol, vejo do meu leito improvisado entre galhos da árvore chegar o terceiro brâmane e, tão desonestamente como os outros, retirar, por sua vez, as trinta moedas que julgava pertencerem, em parte, aos seus amigos. Procedi, ainda uma vez, à reposição da quantia subtraída. - Agora sim - pensei - não haverá mais luta entre os brâmanes. Cada um deles há de admirar-se da inexplicável restituição, mas nada poderá reclamar dos companheiros!". Ao romper do dia continuei a minha viagem sem mais pensar no caso. Estive na China e visitei, durante vários meses, o país de Chang-li. Ao chegar hoje de regresso a esta cidade soube do desejo que Vossa Majestade punha em esclarecer o misterioso caso dos três brâmanes e do prêmio que generosamente oferecia àquele que pudesse desvendá-lo.
Estava explicado o mistério. O rei Odaba mandou pôr em liberdade os três brâmanes e aceitou como genro o inteligente e honesto Kibrizi Mehemet. E, alguns anos depois, quando carregava nos braços o netinho querido, costumava dizer-lhe sorrindo: - "Menino ! Essa história está mal contada!"
(*) Marabuto - Pequena construção feita em geral de pedra, para conservar a lembrança do lugar em que foi sepultado um santo (marabu)
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